A capacidade para, com as suas decisões e acções, ter influência decisiva no próprio destino ou no de outras pessoas exerceu, desde tempos que ninguém já se recorda, uma atracção intensa sobre quem, de algum modo, sente em si um desígnio especial ou uma capacidade ímpar para “liderar”.

Aquilo a que chamamos “poder”, nas suas diversas dimensões, já foi considerado (Kissinger) como o mais poderoso dos afrodisíacos. Porque com o poder se conseguem outras coisas e a sua sedução é enorme, ao ponto de, quando surge a oportunidade de o exercer em proveito próprio, poucos serem os que resistem a tal fascínio.

A caminho do final do século XIX, Lord Acton escreveu que “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”, acrescentando que “os grandes homens são quase sempre maus, mesmo quando exercem influência e não autoridade”.

E muito antes, já Shakespeare tinha desenvolvido o tema de forma dramática em muitos dos seus escritos e advertido que “o Diabo tem o poder para assumir uma forma agradável” (Hamlet), o que é especialmente relevante quando alguém pretende ocultar a sua ânsia pelo poder com o interesse de servir terceiros.

Porque há duas formas de querer ter “poder”: conseguir com isso controlar a sua própria vida e destino, pois a sensação de fragilidade e vulnerabilidade é das principais causas de frustração, que levam a desequilíbrios na saúde mental; ou ter a capacidade de influenciar a vida de muitas outras pessoas, nomeadamente através do acesso a posições de dominação política ou económica, quando não religiosa ou mesmo militar.

No primeiro caso, estamos perante um esforço individual por conquistar autonomia, independência ou liberdade para agir, sem pressões e constrangimentos externos excessivos ou que, deste ou daquele modo, limitem de forma quase determinista a capacidade de uma pessoa alcançar os seus objectivos. No segundo caso, temos o desejo de alcançar uma posição de liderança, no sentido de conseguir determinar o destino do ambiente em nosso redor, em particular do meio social, mais ou menos alargado, no qual nos inserimos ou que sentimos a legitimidade para conduzir.

Estamos aqui, de forma clara, no território da Política e da disputa pelo poder de “governar”, de legislar, de exercer autoridade e coerção sobre os outros indivíduos. Ou seja, estamos num território mais concreto do exercício do poder do que o concebido por Foucault no sentido do poder estar em todo o lado. Embora a sedução dos micro-poderes de proximidade tenha uma capacidade de intoxicar igualmente violenta. Aliás, não é raro que o exercício mais abusivo e cruel do poder sobre outrem se manifeste à escala local, sobre aqueles que estão mais próximos.

O serviço público, não apenas o do aparelho administrativo, mas em especial ao nível dos decisores políticos, deixou de ser atractivo para quem pretende exercê-lo do modo como foi concebido nos regimes liberais saídos do Iluminismo, com o sistema de checks and balances, acabando por ser capturado por representantes dos interesses que deveria regular. Em grande parte, devido ao modo como progressivamente o poder económico conseguiu controlar um poder mediático, que se pretendia independente, mas acabou por se tornar uma extensão das estratégias de promoção de políticos como produtos de consumo de massas.

Por isso, os mecanismos de acesso ao poder, em particular os legítimos, resultantes do regime democrático, devem ser especialmente exigentes no escrutínio de quem a eles acede. Não sou dos que acha que quem se apropria dos mecanismos legais de poder deva ser tratado como qualquer outro cidadão, porque não é como qualquer outro cidadão. A vida “pública” tem essa designação por alguma razão e, embora se mantenha o dever de reserva da privacidade dos indivíduos, quem pretende ter poder de decidir sobre o destino de milhões deve estar consciente de que isso pode e deve vir com deveres acrescidos de transparência e responsabilização.


Escreve de acordo com a antiga ortografia.

QOSHE - O poder - Paulo Guinote
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O poder

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15.04.2024

A capacidade para, com as suas decisões e acções, ter influência decisiva no próprio destino ou no de outras pessoas exerceu, desde tempos que ninguém já se recorda, uma atracção intensa sobre quem, de algum modo, sente em si um desígnio especial ou uma capacidade ímpar para “liderar”.

Aquilo a que chamamos “poder”, nas suas diversas dimensões, já foi considerado (Kissinger) como o mais poderoso dos afrodisíacos. Porque com o poder se conseguem outras coisas e a sua sedução é enorme, ao ponto de, quando surge a oportunidade de o exercer em proveito próprio, poucos serem os que resistem a tal fascínio.

A caminho do final do século XIX, Lord Acton escreveu que “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”, acrescentando que “os grandes homens são quase sempre maus, mesmo quando exercem influência e não autoridade”.

E muito antes, já Shakespeare tinha desenvolvido o tema de forma dramática em muitos dos seus escritos e advertido que “o Diabo tem o........

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