Dizia um pensador antigo que "há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem". É o sentimento que nos assola perante o turbilhão de acontecimentos dos últimos dias. Em menos de 72 horas dissolveu-se a maioria absoluta e encaminhou-se o país para eleições antecipadas. Em democracia, a crise política resolve-se devolvendo a voz ao soberano, o povo, mas a normalidade dos preceitos democráticos não consegue esconder as anormalidades dos últimos dias.

Não tecerei juízos judiciais - sobre isso só posso pedir transparência máxima e rapidez. Mas sobre as questões políticas, há considerações inevitáveis, em particular de quem criticou várias escolhas-chave cujas consequências estão agora expostas.

O negócio sempre teve primazia no mundo da política, particularmente num país em que o investimento público agoniza. Fica o interesse público diluído na necessidade do negócio para uma economia sempre em dificuldades: "Harmonização de interesses", disse António Costa na noite do passado sábado. Mas sabemos como essa dita "harmonização" sabe sempre amarga às populações que veem a sua Saúde Pública desvalorizada, ao ambiente que passa para segundo plano e aos cidadãos que ficam sempre para trás em benefício de um grande grupo económico.

É por isso que denunciámos os grandes projetos do lítio ou do hidrogénio que foram impostos como facto consumados, a partir de negociações entre grupos económicos e Governo, com protagonismo de figuras com mau currículo na proteção do interesse público. São parte da realidade em que aos negócios é oferecida uma via verde contra todos os outros interesses. Em 2016, criticámos a contratação pelo Governo do consultor Lacerda Machado. Em 2018, pedimos a demissão do presidente da APA por complacência com interesses privados, já em 2021 expusemos a sua atuação favorável à EDP na venda das barragens. A mesma EDP que tinha Lacerda Machado nos seus órgãos nos mesmos anos em que Manuel Pinho era ministro e Vítor Escária era assessor económico de José Sócrates. Conhecemos tudo isto porque tudo isto foi matéria do Inquérito Parlamentar que o Bloco de Esquerda promoveu em 2019. Aliás, o último ato legislativo que fizemos na anterior legislatura foi para restringir o "bar aberto" que tinha sido inaugurado com a Lei das Minas da Lavra de Matos Fernandes e João Galamba.

Os holofotes que se acendem na última semana focaram nos protagonistas que já conhecemos e nunca deixámos em paz. Sempre dissemos que a esquerda não é isto: há uma esquerda de confiança que sempre se bateu contra a corrupção e contra a promiscuidade entre a política e os negócios.

Por isso sempre combatemos o regime legal de desresponsabilização ambiental ou o já antigo regime dos Projetos de Interesse Nacional, criado no Governo de José Sócrates. Serviram para atropelos já conhecidos ao longo dos anos, para inúmeros negócios pouco claros, foram promovidos quer por PS, quer por PSD, e deles só saíram vencedores os do costume: os privilegiados do sistema. Todas as facilidades para o dinheiro, todas as dificuldades na vida das pessoas.

Hoje, num país envergonhado com aquilo a que está a assistir, a palavra tem de ser de esperança. Apresentaremos alternativa: soluções urgentes para aquilo que verdadeiramente importa: os salários e as pensões que deixaram de pagar o básico, o tormento da habitação, a degradação das condições da educação e da saúde e o fracasso das políticas de transição ambiental. Vamos à luta com essa força de quem sabe que carrega a verdadeira alternativa a este miserável estado de coisas.

Presidente da bancada parlamentar do BE

QOSHE - Chocar ovos de serpente - Pedro Filipe Soares
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Chocar ovos de serpente

7 0
13.11.2023

Dizia um pensador antigo que "há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem". É o sentimento que nos assola perante o turbilhão de acontecimentos dos últimos dias. Em menos de 72 horas dissolveu-se a maioria absoluta e encaminhou-se o país para eleições antecipadas. Em democracia, a crise política resolve-se devolvendo a voz ao soberano, o povo, mas a normalidade dos preceitos democráticos não consegue esconder as anormalidades dos últimos dias.

Não tecerei juízos judiciais - sobre isso só posso pedir transparência máxima e rapidez. Mas sobre as questões políticas, há considerações inevitáveis, em particular de quem criticou várias escolhas-chave cujas consequências estão agora expostas.

O negócio sempre teve primazia no mundo da política, particularmente num país em que o investimento público agoniza. Fica o interesse público diluído na necessidade do........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play