O Infarmed comunicou na semana passada que 33 crianças receberam em Portugal, desde 2019, o Zolgensma, o tal medicamento que custava dois milhões de euros em 2 de março de 2020, data em que o mesmo organismo aprovou a sua aplicação às gémeas que estão sob suspeita de terem beneficiado de um tratamento de favor, após um pedido de informação feito à Presidência da República, que levantou uma hipótese de "cunha" institucional, o que criou mais um motivo de agitação política em Portugal, após uma pertinente investigação jornalística da TVI.

O dito Infarmed, a instituição que autoriza a comercialização de medicamentos em Portugal, explicou ainda que o Zolgensma já não custa dois milhões de euros, mas recusou dizer o preço atual, embora adiante que é "substancialmente mais baixo". Numa resposta a uma pergunta da Agência Lusa, diz-se que tal silêncio se deve "às cláusulas de confidencialidade incluídas nos contratos de financiamento a pedido dos laboratórios detentores dos medicamentos".

O remédio é fabricado pela Novartis, uma empresa de origem suíça que é um dos grandes conglomerados mundiais dessa indústria. Ela alega que investiu "centenas de milhões de dólares" em 12 anos de investigação científica para conseguir obter este tratamento inovador para a atrofia muscular espinal.

Uma notícia do jornal Público explica que a Novartis comprou em 2018 o laboratório Avexis, que investigava o fármaco, por sete mil milhões de euros, e que o Zolgensma rendeu entretanto 4240 milhões de euros, segundo os relatórios e contas da empresa.

A incidência desta doença genética rara atinge 1 em cada 10 mil nascimentos no mundo, o que em teoria significa que em cada ano, em média, cerca de 14 mil crianças terão esta doença e, portanto, serão teoricamente elegíveis para este tratamento. Imaginando que era possível tratar metade desses bebés com Zolgensma e que o preço do medicamento baixou entretanto 50% em relação ao preço de 2020, custando agora 1 milhão de euros (o que seria caríssimo mas, mesmo assim, "substancialmente mais baixo" do que antes, como jura o Infarmed), isso significaria que a Novartis receberia 7 mil milhões de euros num único ano pela venda desse fármaco, um valor muito acima das "centenas de milhões de dólares" investidos no seu desenvolvimento.

Mesmo se o tratamento só fosse dado a mil crianças, os lucros já seriam substanciais. Como ele é comercializado desde 2019, adivinho uma faturação colossal passada pela Novartis em múltiplos países, incluindo Portugal.

O que acabei de escrever é especulativo e pode estar totalmente errado - mas esse erro advém da total opacidade com que se comercializam este e outros tipos de medicamentos e da aceitação pelos Estados e pelos organismos reguladores de cláusulas de confidencialidade, como a que o Infarmed cita.

Esse secretismo impede o escrutínio público das despesas, cada vez mais elevadas, com medicamentos, que atingem em todo o mundo quantias verdadeiramente astronómicas, de explicação difícil, sendo que esse dinheiro, no caso de Portugal e de muitos outros países, é pago, na sua maior fatia, pelos contribuintes.

Por outro lado, o valor do investimento feito pelas empresas farmacêuticas em novas descobertas também é secreto e ninguém o escrutina, o que leva a que elas possam alegar serem justos os preços proibitivos que praticam - e, como estão vidas humanas em jogo, pouca gente tem moral para questionar essa prática.

Com os dados que conhecemos, e com os raciocínios que eles nos permitem, temos direito a desconfiar da existência de lucros abusivos no caso do Zolgensma e legitimidade para afirmar que, maior escândalo que a eventual cunha que terá levado à ministração de um medicamento que custa 2 milhões de euros a duas bebés, é o preço obsceno desse fármaco e o contrato secreto do Infarmed para a sua aquisição em Portugal, que oficializa essa obscenidade.

Se esta afirmação for injusta, então provem-no, claramente, com todas as continhas à mostra, se faz favor.

A Iniciativa Liberal, ao tentar legitimamente aproveitar o escândalo para retirar dividendos políticos, anunciou que quer fazer uma audição parlamentar sobre o caso à ministra da Saúde da época, Marta Temido, ao secretário de Estado da altura, Lacerda Sales, e ao filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, o suposto "influenciador" para a alegada "cunha". Pelo menos até agora a Novartis e o Infarmed ficaram de fora dessa intenção de inquirição anunciada por Rui Rocha...

...Até imagino o brado por aquelas bandas: "Longa vida à iniciativa privada!"

Jornalista

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Por que é que o preço dos medicamentos pode ser secreto?

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13.12.2023

O Infarmed comunicou na semana passada que 33 crianças receberam em Portugal, desde 2019, o Zolgensma, o tal medicamento que custava dois milhões de euros em 2 de março de 2020, data em que o mesmo organismo aprovou a sua aplicação às gémeas que estão sob suspeita de terem beneficiado de um tratamento de favor, após um pedido de informação feito à Presidência da República, que levantou uma hipótese de "cunha" institucional, o que criou mais um motivo de agitação política em Portugal, após uma pertinente investigação jornalística da TVI.

O dito Infarmed, a instituição que autoriza a comercialização de medicamentos em Portugal, explicou ainda que o Zolgensma já não custa dois milhões de euros, mas recusou dizer o preço atual, embora adiante que é "substancialmente mais baixo". Numa resposta a uma pergunta da Agência Lusa, diz-se que tal silêncio se deve "às cláusulas de confidencialidade incluídas nos contratos de financiamento a pedido dos laboratórios detentores dos medicamentos".

O remédio é fabricado pela Novartis, uma empresa de origem suíça que é um dos grandes conglomerados mundiais dessa indústria. Ela alega que........

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