A pouco mais de hora e meia desde a fronteira de Vila Real de Santo António, encontramos a maior reserva de biosfera da Europa, no Parque Doñana, que se estende por uns 130 mil hectares de Huelva a Sevilha. Património da Humanidade, é uma das zonas húmidas mais importantes do continente, sendo habitat de variadíssimas espécies animais, em particular aves, e uma das rotas migratórias mais importantes entre os continentes europeu e africano. Ou, pelo menos, assim foi durante várias décadas, até ver as suas reservas de água ameaçadas pelo crescimento selvagem de plantações de morangos e outros frutos vermelhos que assaltaram a paisagem da região nos últimos 20 anos, transformando a Andaluzia na horta da Europa.

Se os produtores da região foram prosperando, assegurando ali a maioria dos morangos consumidos pelos europeus, ao longo de 8000 hectares de estufas, o Parque de Doñana foi definhando, secando pântanos e lagoas, ameaçando a sobrevivência de espécies únicas, vítima de um emaranhado de interesses económicos, alterações climáticas e visões de curto prazo de políticos em busca do voto fácil que abriam caminhos à legalização de áreas de regadio às portas do parque para sugar o mais precioso recurso daquela reserva natural.

O desastre anunciado despertou consciências em alguns consumidores dos apetitosos morangos e framboesas no centro da Europa, onde se chegaram a anunciar boicotes ao consumo dos frutos vermelhos andaluzes, levou a condenações ao Estado espanhol na Justiça europeia e atirou mesmo Doñana para fora da Lista Verde da União para a Conservação da Natureza, numa exclusão inédita.

Hoje, a tragédia está à vista: uma das maiores áreas húmidas da Europa está sob ameaça de secar. Das cerca de três mil lagoas classificadas, 60% já desapareceram completamente. E já só 2% do pântano tem água. Com o parque nacional à beira do colapso e a UNESCO a ameaçar retirar o reconhecimento de Património Mundial, o Governo espanhol anunciou, no final de 2023, um plano para salvar Doñana. São 1400 milhões de euros para tentar devolver o parque às suas condições naturais e, entre outras coisas, patrocinar a substituição de muitas das estufas que sorvem água o ano inteiro por tradicionais culturas de sequeiro.

Uns quilómetros mais ao lado, no Levante Espanhol, chegam as águas do transvase Tejo-Segura, uma das maiores obras hidráulicas de engenharia em Espanha, projetada ainda nos tempos do ditador Franco. Inaugurada em 1979, esta autoestrada da água que desvia o líquido precioso desde a Bacia do Tejo, das províncias de Guadalajara e Cuenca, fez crescer uma paisagem de frutas e legumes em terras quase desérticas de Alicante, Almería e Múrcia. Quarenta anos depois, no entanto, as albufeiras de Entrepeñas e Buendía, de onde a água é desviada, já não têm a mesma abundância, fruto das alterações climáticas e da sobrexploração. O que levou os agricultores do Tejo espanhol a aumentar o volume dos protestos, nos últimos anos, contra um transvase que lhes retira água de que necessitam e vai alimentar culturas intensivas e superintensivas - onde elas, naturalmente, não deveriam existir -, bem como a expansão de urbanizações e do turismo de massas. Para amenizar as tensões e garantir o caudal ecológico do Tejo, o Governo espanhol já anunciou um corte de 40% na quantidade de água transferida anualmente a partir de 2027.

Recordo estes exemplos dos vizinhos espanhóis quando, do lado de cá da fronteira, ouço gritar contra a seca no Sul do país, rogar pragas a São Pedro e clamar por essas autoestradas que desviem as águas das chuvas que caem a Norte, ao mesmo tempo que vemos a grande reserva do Alqueva cada vez mais sugada por culturas superintensivas geridas por fundos de investimento, ou um mar de estufas de mirtilos, framboesas e abacates espalhadas pelo Litoral Alentejano e pelo Algarve, já para não falar nos mega empreendimentos turísticos que continuam a crescer em zonas que deveriam ser protegidas.

A vantagem de termos um país vizinho mais desenvolvido é podermos olhar para o lado como para um tubo de ensaio. Para o bem e para o mal. E no que toca a gestão sustentável da água, Espanha já nos mostrou que caminhos não seguir.

Editor do Diário de Notícias

QOSHE - E Doñana aqui tão perto… - Rui Frias
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

E Doñana aqui tão perto…

19 0
17.01.2024

A pouco mais de hora e meia desde a fronteira de Vila Real de Santo António, encontramos a maior reserva de biosfera da Europa, no Parque Doñana, que se estende por uns 130 mil hectares de Huelva a Sevilha. Património da Humanidade, é uma das zonas húmidas mais importantes do continente, sendo habitat de variadíssimas espécies animais, em particular aves, e uma das rotas migratórias mais importantes entre os continentes europeu e africano. Ou, pelo menos, assim foi durante várias décadas, até ver as suas reservas de água ameaçadas pelo crescimento selvagem de plantações de morangos e outros frutos vermelhos que assaltaram a paisagem da região nos últimos 20 anos, transformando a Andaluzia na horta da Europa.

Se os produtores da região foram prosperando, assegurando ali a maioria dos morangos consumidos pelos europeus, ao longo de 8000 hectares de estufas, o Parque de Doñana foi definhando, secando pântanos e lagoas, ameaçando a sobrevivência de espécies únicas, vítima de um emaranhado de interesses económicos, alterações climáticas e........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play