O Orçamento do Estado (OE) para 2024 está "a prazo". Independentemente do próximo Governo - e a menos que o PS conquiste uma nova e improvabilíssima maioria absoluta -, será certo que o documento aprovado na passada quarta-feira venha a ser retificado. Contudo, a atualização da tabela remuneratória da carreira diplomática e os seus respetivos abonos - um tema que até reúne consenso entre os partidos com assento na Assembleia da República - parece ter sido esquecida... pelo 26º ano consecutivo!

Para dizer a verdade, não foi esquecida, foi rejeitada, pois propostas não faltaram - PCP, PAN, PSD e Chega apresentaram propostas que comprometiam o Governo a proceder, em 2024, a esta revisão e atualização tão necessárias. Acontece que, embora a manifestação unânime de consternação e apoio verificada numa audição da Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, em setembro último, o mesmo não aconteceu na Comissão de Orçamento e Finanças, aquando da discussão do OE na especialidade - o PS votou contra todas as propostas.

Novamente, venceu o eleitoralismo. Sim, porque aumentar salários congelados há mais de um quarto de século a meia dúzia de gatos pingados - leia-se: a 528 diplomatas - não vence eleições e só dá despesa. Todavia, essa despesa é mesmo muito necessária.

Num mundo onde o multiplicar de conflitos e dos seus atores desafiam progressivamente a afirmação internacional de Portugal e o seu papel na União Europeia, na NATO, na CPLP e junto das comunidades portuguesas, o Estado alocar, como se prevê para 2024, apenas 0,55% do seu orçamento anual ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) - ou 673,4 milhões de euros - parece surreal. E noto que este já é um valor híper inflacionado pelo aumento brutal de 371,6% da despesa não efetiva, de ativos financeiros no valor de 188,6 milhões de euros, alocada à AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal) para projetos no âmbito do sistema de incentivos a empresas.

Abordei as condições atuais da carreira diplomática noutro artigo neste mesmo jornal, em outubro último, mas o tempo passa e torna-se cada vez mais incompreensível que não se consigam encontrar soluções para que estes funcionários públicos exerçam com condições minimamente dignas uma função de soberania do Estado. Repito, falamos de salários congelados há mais de um quarto de século e, inclusive, de reduções de abonos - importantíssimos para o exercício das funções no estrangeiro.

Assim, e considerado que estará para breve a abertura de um novo concurso externo de ingresso na categoria de adido de embaixada da carreira diplomática, levanta-se a questão: quem quer ser diplomata? Depois de concluído com sucesso aquele que é o mais longo e exigente concurso de acesso à administração pública, quem quer um salário de entrada desadequado à responsabilidade das funções assumidas e que torna difícil comportar o mais elementar dos encargos? Com o degradar das condições da carreira, conseguirão os futuros concursos recrutar novos quadros de excelência, como é característico da diplomacia portuguesa?

De facto, quem é - ou queira ser - diplomata, não o faz pelos luxos de outrora. Se ainda há quem procure exercer esta profissão, certamente, fá-lo-á pelo imensurável gosto por servir o país e defender os seus concidadãos além-fronteiras, e pelas memórias e historietas que guardará para contar, antes que se esqueça. E nós, lembrar-nos-emos dos diplomatas só quando precisamos deles, ou confirma-se a memória seletiva?

Mestre em Desenvolvimento Internacional e Políticas Públicas e Membro Fundador da All4Integrity

QOSHE - Memória seletiva - Tiago Gaspar
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Memória seletiva

5 0
01.12.2023

O Orçamento do Estado (OE) para 2024 está "a prazo". Independentemente do próximo Governo - e a menos que o PS conquiste uma nova e improvabilíssima maioria absoluta -, será certo que o documento aprovado na passada quarta-feira venha a ser retificado. Contudo, a atualização da tabela remuneratória da carreira diplomática e os seus respetivos abonos - um tema que até reúne consenso entre os partidos com assento na Assembleia da República - parece ter sido esquecida... pelo 26º ano consecutivo!

Para dizer a verdade, não foi esquecida, foi rejeitada, pois propostas não faltaram - PCP, PAN, PSD e Chega apresentaram propostas que comprometiam o Governo a proceder, em 2024, a esta revisão e atualização tão necessárias. Acontece que, embora a manifestação unânime de consternação e apoio verificada numa audição da Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, em setembro último, o........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play