Nasci pouco depois do 25.º aniversário da Revolução de abril de 1974. Nesse mesmo ano, o euro foi introduzido (para as transações comerciais e financeiras), Portugal procedeu à transferência da soberania de Macau para a China e a população de Timor votou em referendo a favor da independência.

Então, é até constrangedor dizê-lo, mas a maior revolução que experienciei foi quando, na primeira aula do meu 3.º ano, a professora informou a turma que teríamos de adotar um novo acordo ortográfico (que ainda hoje não foi plenamente adotado, diga-se). Por estes e outros motivos, mas, sobretudo, graças aos direitos, liberdades e garantias conquistados pelas gerações anteriores à minha, não sei o que é viver sem liberdade.

Por sorte, sou um privilegiado. Poderia ter vivido a peste negra, as invasões francesas, ou a guerra colonial portuguesa. Contudo, colocando em perspetiva, deu-se o feliz acaso de partilhar com Portugal pouco mais de 2,7% da sua história, justamente, no seu período democrático.

A democracia deu-nos a liberdade – um verdadeiro superpoder. Todavia, como fazia questão de frisar o diretor de uma das faculdades por onde passei (para as gentes sérias), ou o tio Ben do homem-aranha (para os mais novos ou aficionados de banda desenhada), “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.

Recordo-me, então, do célebre discurso de João Miguel Tavares, aquando das Comemorações do Dia de Portugal, que este presidia em 2019. Naquela ocasião, a poucos metros do local onde cresceu, em Portalegre, o cronista afirmava que, ao contrário dos pais de outrora (que tinham o propósito de dar aos filhos o que eles nunca tiveram), “não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia”. Mas não é óbvio?

Perante a metamorfose crónica (e cada vez mais acelerada) que desafia existencialmente o país e o mundo, a nossa luta – a nossa responsabilidade inalienável – é, como sempre deverá ser, pelo aprofundamento da democracia e da liberdade.

A Constituição afirma que Portugal é uma República “baseada na dignidade da pessoa humana” e que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Mas será que é assim mesmo? Será que os ideais que defendemos correspondem à realidade? Independentemente de quem somos ou de onde vimos, seremos todos presenteados com as mesmas oportunidades?

Certamente que o caminho ainda é longo e, como vamos experienciando, procurarmos atalhos é metermo-nos em trabalhos. Deste modo, nesta ocasião festiva, que a nossa ida para as ruas e os cravos sejam um estímulo à reflexão sobre dois momentos cruciais: o passado e o futuro.

Refletindo sobre o passado, lembremo-nos da censura, da repressão política, da violência, da opressão das mulheres, das altas taxas de pobreza, analfabetismo e desemprego, e das inúmeras violações dos direitos humanos que nunca mais podemos tolerar ou permitir. Sobre o futuro, é essencial reconhecermos que a liberdade não é uma manhã de abril, mas uma condição que exige cuidado.

Hoje, no cinquentenário do 25 de abril, sinto-me grato por não saber o que é viver sem liberdade. Mais, não sei, nem quero saber. Sei, no entanto, que esta é uma luta constante e que, por isso, continuaremos a lutar por uma democracia que não seja apenas um conceito abstrato, mas uma realidade tangível para todos.

QOSHE - Viver sem liberdade? Não sei, nem quero saber - Tiago Gaspar
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Viver sem liberdade? Não sei, nem quero saber

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20.04.2024

Nasci pouco depois do 25.º aniversário da Revolução de abril de 1974. Nesse mesmo ano, o euro foi introduzido (para as transações comerciais e financeiras), Portugal procedeu à transferência da soberania de Macau para a China e a população de Timor votou em referendo a favor da independência.

Então, é até constrangedor dizê-lo, mas a maior revolução que experienciei foi quando, na primeira aula do meu 3.º ano, a professora informou a turma que teríamos de adotar um novo acordo ortográfico (que ainda hoje não foi plenamente adotado, diga-se). Por estes e outros motivos, mas, sobretudo, graças aos direitos, liberdades e garantias conquistados pelas gerações anteriores à minha, não sei o que é viver sem liberdade.

Por sorte, sou um privilegiado. Poderia ter vivido a peste negra, as invasões francesas, ou a guerra........

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