No momento em que escrevo sei que a nossa jornalista Amanda Lima está junto à Igreja dos Anjos, freguesia de Arroios (PSD) onde nos últimos meses se foram acumulando tendas (cerca de 90), no jardim e passeios públicos, onde vivem imigrantes sem abrigo, principalmente africanos de países como Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Marrocos, Tunísia e Bangladesh. Disse vivem, mas na realidade sobrevivem em condições desumanas e insalubres. De acordo com a informação que conseguimos, até ao momento, recolher, a situação destas pessoas, todos homens, varia entre os que estão com a situação regularizada (em menor número), os que aguardam decisão sobre o seu pedido de autorização de residência, os que já viram recusado o seu pedido e recorreram e aqueles que recorreram, perderam e foram notificados para sair do país.

Sabemos que desde o início da semana está uma equipa multidisciplinar no terreno que envolve, entre outros, a Câmara Municipal de Lisboa, a Agência Integrada para as Migrações e Asilo (AIMA), a Junta de Freguesia e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a Polícia Municipal e a PSP, para procurar soluções que permitam, por um lado, transferir aquelas pessoas para um local em condições e, por outro, devolver a rua, o jardim e o átrio da igreja (também ocupado) a todos.

Esta situação não é única, como sublinhou a Comunidade Vida e Paz, uma das maiores organizações de apoio aos sem-abrigo, à nossa jornalista Isabel Laranjo, na sua reportagem publicada nesta quinta-feira. Além dos Anjos, também na zona de Santa Apolónia os estrangeiros são a maioria dos sem-abrigo.

Ao mesmo tempo que a equipa referida estava ontem a avaliar cuidadosamente, caso a caso, os imigrantes dos Anjos, quer do ponto de vista legal, quer de saúde, para decidir a melhor solução, um advogado partilhou comigo a seguinte mensagem: “Estão a deter e deportar requerentes de asilo que estavam em frente à Igreja dos Anjos. Parecem 40 ou 50 pessoas. Posso passar o seu número?”.

A informação era falsa, ao que soubemos no local, mas certamente circulou por vários destinatários, provocando indignação em muitos. É um comportamento semelhante a muitos outros quando se fala de imigrantes. Sempre com reações extremadas e extremistas, baseadas em factos falsos ou deturpados, como o de associar a imigração à criminalidade (o que está mais que demonstrado que é mentira: o facto de haver tanta gente nesta situação e não se notar aumento da criminalidade demonstra que não são pessoas perigosas) ou de transformar tudo num ataque aos direitos humanos.

Nesta matéria, como em quase tudo na vida, aliás, é no equilíbrio que está a resposta.

Lembro-me bem de quando, em 2017, em nome desse humanismo, o Governo PS, juntamente com o BE e o PCP, se preparava para alterar a Lei de Estrangeiros - permitindo a regularização de milhares de imigrantes tornando regra uma medida que era para casos excecionais - , foram ignorados os alertas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) sobre o efeito chamada que essa decisão provocaria. O que se confirmou.

Provavelmente poucos se lembram, mas logo em 2020 a pressão nas fronteiras era tal que a capacidade do SEF para instalar os requerentes de residência e asilo se esgotou e o Governo foi obrigado a colocá-los em quartéis do Exército e cadeias.

Orgulhosos do fluxo sem precedentes de imigrantes ao nosso país, tão desejados para o crescimento da economia e que tanta falta faz a certos setores (essencialmente aqueles onde a precariedade não atrai trabalhadores portugueses), inspirados pelo espírito humanitário, esqueceram-se de preparar o país para essa inevitável chegada de centenas de milhares de pessoas ávidas de uma vida melhor.

Mas foi para a exploração laboral, para casas (quando são casas) a rebentar pelas costuras, para as ruas que atiraram esta fonte de “riqueza” para o país. Um humanismo hipócrita criado por uma legislação com tantos alçapões que facilitam, não só o trabalho às redes criminosas, como já alertou o próprio Ministério Público, como vão criando expetativas que não temos condições de assegurar no nosso Estado Social. Como defende Ana Rita Gil, especialista e doutorada em Direitos Fundamentais de imigração, com a criação dos novos vistos de procura de trabalho “deviam fechar as regularizações” extraordinárias que estavam em vigor e que deixam milhares de imigrantes “ilegais e a ser explorados”. A sua avaliação académica, e de experiência no terreno, é a de que em Portugal “temos uma regularização em massa permanente”, o que “vai totalmente contra” a orientação da União Europeia. “Mais do que isso, é uma política de imigração irresponsável porque ao fazermos da regularização o normal, significa que não sabemos quem nem quantas pessoas temos no país.”

Não sei se as suas palavras foram ouvidas e lidas por quem no programa do Governo da AD decidiu o que fazer nestas matérias. Apesar de não ser um bom sinal a extinção da secretaria de Estado das Migrações, que existia desde 2019, as opções previstas estão alinhadas com o Pacto em Matéria de Migração e Asilo, aprovado esta semana pelo Parlamento Europeu, debaixo de muita controvérsia, que tem como lema um “equilíbrio entre solidariedade e responsabilidade”. O facto de ter desagradado à extrema-direita é um ótimo sinal. Por cá, o compromisso de Luís Montenegro é o de “promover uma imigração regulada, com humanismo, digna e construtiva para o desenvolvimento sustentável de Portugal”. Regulada porque só assim é possível o humanismo sem hipocrisia. Começar por criar uma ligação permanente, sólida e eficaz, entre a AIMA, GNR, PJ e PSP é um bom primeiro passo.

Diretora adjunta do Diário de Notícias

QOSHE - Imigrantes e um humanismo hipócrita - Valentina Marcelino
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Imigrantes e um humanismo hipócrita

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12.04.2024

No momento em que escrevo sei que a nossa jornalista Amanda Lima está junto à Igreja dos Anjos, freguesia de Arroios (PSD) onde nos últimos meses se foram acumulando tendas (cerca de 90), no jardim e passeios públicos, onde vivem imigrantes sem abrigo, principalmente africanos de países como Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Marrocos, Tunísia e Bangladesh. Disse vivem, mas na realidade sobrevivem em condições desumanas e insalubres. De acordo com a informação que conseguimos, até ao momento, recolher, a situação destas pessoas, todos homens, varia entre os que estão com a situação regularizada (em menor número), os que aguardam decisão sobre o seu pedido de autorização de residência, os que já viram recusado o seu pedido e recorreram e aqueles que recorreram, perderam e foram notificados para sair do país.

Sabemos que desde o início da semana está uma equipa multidisciplinar no terreno que envolve, entre outros, a Câmara Municipal de Lisboa, a Agência Integrada para as Migrações e Asilo (AIMA), a Junta de Freguesia e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a Polícia Municipal e a PSP, para procurar soluções que permitam, por um lado, transferir aquelas pessoas para um local em condições e, por outro, devolver a rua, o jardim e o átrio da igreja (também ocupado) a todos.

Esta situação não é única, como sublinhou a Comunidade Vida e Paz, uma das maiores organizações de apoio aos sem-abrigo, à nossa........

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