A arena internacional é hoje um tabuleiro de incertezas. Quando o representante de um Estado com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU diz que uma resolução votada nesse Conselho não tem caracter vinculativo, só podemos interrogar-nos sobre que mundo estamos a construir. Quando um outro membro permanente acusa um país vizinho, sem quaisquer provas nem lógica, de ser responsável por um atentado terrorista, para ter um motivo para aumentar a brutalidade da agressão militar contra esse vizinho, que pensar senão num crescendo da instabilidade internacional? E perguntar se, como e quando será possível voltar ao caminho da paz?

Acresce uma outra questão, igualmente crucial: estaremos nós a perder a luta em defesa da democracia?

A preocupação central de um ditador é manter-se no poder, a qualquer custo. Quem não compreende isso deve ser porque não lidou de perto com personagens desse tipo. Pode ter lido umas coisas sobre os regimes ditatoriais, percorrido umas biografias escritas sobre alguns dos casos mais famosos, mas falta-lhe algo fundamental: não teve a experiência de enfrentar, na vida política real, um déspota no poder.

Cada tirano tem o seu estilo, mas todos comungam de duas características essenciais para assegurar o seu mando: a artimanha e a violência, ambas sem limites. Esses são os pilares que sustentam qualquer tirania. Quem não olhar para a realidade que existe em certos países sem ter em conta esses dois prismas, deixar-se-á facilmente iludir, quer o queira quer não. É o que acontece a certos comentadores com banca na praça pública. Engolem sem se engasgar as falsidades que os ditadores põem a circular. Na realidade, esses comentadores parecem não compreender, nem tentar imaginar, como funcionam as máquinas conspirativas, as polícias políticas e os sistemas clandestinos de propaganda.

Isto também se aplica, embora a uma escala menor, por causa da força das instituições, aos políticos que por aí andam convencidos que são mais espertos que os outros ou que têm uma suposta missão histórica. Mas a tendência é semelhante e se não houver habilidade para os conter, acabarão por se implantar como verdadeiros autocratas. É por isso que considero um perigo global a possibilidade de Donald Trump ganhar as eleições presidenciais deste ano nos EUA. Ou que certos radicais europeus possam adquirir suficiente peso parlamentar que lhes permita manipular as regras do jogo democrático no nosso espaço geopolítico.

Estes são tempos de extremismo. A democracia corre o risco de sucumbir aos pés da demagogia. A obsessão pelas redes sociais, a manipulação da inteligência artificial e a influência acrítica de certos canais televisivos podem servir para alimentar as fraturas ideológicas, transformando-as em convicções clubistas. São alavancas modernas que os monstros políticos procuram capturar. Em certas sociedades europeias e noutras, a opinião política deixou de ser construída à volta de ideais e de planos. O slogan populista basta. As expressões esquerda e direita perderam o sentido, tornaram-se ocas e transformaram-se em capelas erguidas à volta de certas personalidades, sobretudo as que têm uma voz grossa, um pensamento simplista e um desprezo evidente por outros segmentos da sociedade.
A demagogia é o terreno fértil dos oportunistas e dos caciques primários. O desafio é combatê-la com serenidade e coragem. Não é fácil manter o sangue-frio. Mas temos de nos lembrar que a exaltação e o enraivecimento são as ratoeiras que os extremistas nos colocam no caminho. Não podemos cair nessas armadilhas.

Não se trata de andar obcecados com teorias da conspiração. Mas não podemos ser ingénuos quando somos confrontados com os fiéis de Vladimir Putin, de Trump, e outros, incluindo os que agora pesam na sociedade portuguesa. Também não se deve responder aos extremistas de direita com os slogans clássicos do radicalismo de esquerda. Esse método faz parte do contexto das sociedades de outrora. Não diz nada aos jovens de hoje. As novas gerações querem soluções concretas para o seu futuro, a começar por um ensino moderno, oportunidades de emprego remunerado condignamente, saúde, habitação e liberdade. A derrota da demagogia passa pela resolução de problemas deste tipo.

Esta é a encruzilhada política em que nos encontramos: ineficácia e caos, oferecidos numa bandeja pelos incompetentes, e ilusões e intolerância, armadilhadas pelos aspirantes a ditadores; ou, numa verdadeira alternativa, com criatividade, lisura e tolerância, que são as bandeiras que os democratas devem desfraldar sem hesitações.

QOSHE - Paz e democracia: não podemos ser ingénuos nem vacilantes - Victor Ângelo
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Paz e democracia: não podemos ser ingénuos nem vacilantes

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30.03.2024

A arena internacional é hoje um tabuleiro de incertezas. Quando o representante de um Estado com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU diz que uma resolução votada nesse Conselho não tem caracter vinculativo, só podemos interrogar-nos sobre que mundo estamos a construir. Quando um outro membro permanente acusa um país vizinho, sem quaisquer provas nem lógica, de ser responsável por um atentado terrorista, para ter um motivo para aumentar a brutalidade da agressão militar contra esse vizinho, que pensar senão num crescendo da instabilidade internacional? E perguntar se, como e quando será possível voltar ao caminho da paz?

Acresce uma outra questão, igualmente crucial: estaremos nós a perder a luta em defesa da democracia?

A preocupação central de um ditador é manter-se no poder, a qualquer custo. Quem não compreende isso deve ser porque não lidou de perto com personagens desse tipo. Pode ter lido umas coisas sobre os regimes ditatoriais, percorrido umas biografias escritas sobre alguns dos casos mais famosos, mas falta-lhe algo fundamental: não teve a experiência de enfrentar, na vida política real, um déspota no........

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