António Barreto não aborda no seu texto (1), como referimos, a distorção causada na transformação de votos em mandatos pelo seu sistema de círculos uninominais. Aliás, ao escolher um sistema de 230 círculos não lhe «sobram» deputados para um possível círculo nacional de compensação, reclamado por outros “viciados” nos círculos uninominais, invocando a sua necessidade para compensar aquela distorção. Aparentemente está pouco preocupado com a subversão de uma questão nuclear em eleições democráticas: um homem um voto, quem tiver mais votos deve proporcionalmente (mesmo se diversas as fórmulas da proporcionalidade) ter mais eleitos e ganhar as eleições! (2). Ou então, porque sabe que o tal «círculo nacional de compensação», que para alguns «limparia» a monstruosidade da desproporcionalidade do sistema «uninominal», é uma fraude política.

Um círculo nacional nunca travará a dinâmica eleitoral local e regional da votação uninominal, personalizada, antes a reproduzirá a nível nacional, submergindo a compensação de proporcionalidade que, em teoria, devia produzir. PS e PSD (e A. Barreto também) sabem de ciência certa que na maioria desses círculos seriam eleitos os seus candidatos! É uma patranha a história de um círculo nacional para compensar a proporcionalidade. A indução do voto útil nos uninominais não só não travará, como será transportada e transferida para esse círculo nacional, reproduzindo a bipolarização. Dinâmicas eleitorais e critérios mediáticos das disputas uni-pessoais irão rearrumar intenções de voto, submergir projectos e propostas políticas a favor dos protagonistas “com nome” na disputa uninominal, a favor de «messias» e outros salvadores.

Outra questão que A. Barreto não aborda são as consequências dos seus 230 círculos uninominais para a Assembleia da República – composição política e funcionamento. Os resultados políticos e institucionais são relativamente fáceis de prever. Teríamos uma Assembleia da República constituída por 230 deputados presidentes de junta de freguesia, sem qualquer menosprezo pelos presidentes de junta. Aliás, o raciocínio podia fazer-se com presidentes de câmara. Esses deputados não teriam qualquer laço político ou institucional entre eles. Mesmo pertencendo a um Partido, não estariam sujeitos à sua orientação e disciplina partidárias, a nenhum enquadramento institucional ou político, a não ser o que decorresse das encomendas da sua «comunidade eleitoral», eleitores do seu círculo uninominal. Mas o que levariam esses deputados não enquadrados (3) à Assembleia da República? É evidente que em teoria podia haver 230 programas eleitorais diferentes a concretizar (trabalhado e negociado na sua «comunidade eleitoral»). Que problemas e que iniciativas apresentariam? Teríamos provavelmente um excedente de problemas à dimensão do círculo e um défice de problemas de âmbito nacional, colmatado pelas iniciativas enviadas pelo governo, que ficaria na prática com o seu monopólio. Qual o espaço geográfico privilegiado de intervenção de cada um dos deputados presidentes da junta? O do seu círculo uninominal, ou o de todo o país, pois constitucionalmente são deputados representantes de todos os portugueses? Era certa e sabida a fragmentação total do universo parlamentar, a somar-se à que já acontece via multiplicação de partidos. A instabilidade e a imprevisibilidade de funcionamento seriam permanentes. E teríamos… um caciquismo de meter medo….

Mas sabemos que todas estas congeminações são preocupações sem razão de ser. Pois, como A. Barreto enuncia sem qualquer dúvida: «O mais provável é que a maioria dos deputados eleitos pertenceriam aos partidos estabelecidos. São eles que têm nome e meios, profissionais de campanha, história e interesses estabelecidos, referências de classe, religião, origem ou doutrina.». Pior, como também garantidamente sabe, a bipolarização seria, com o seu sistema eleitoral, gravada na pedra a ferro e fogo – ver Reino Unido. E seria letra morta a sua tese de que «As relações de cada deputado com o seu partido mudariam de modo significativo» aliviando o direito de comando do Partido. Pelo contrário: a redução do «mercado eleitoral» pela bipolarização, com a constituição de dois partidos «oligopólios», aumentaria o seu poder sobre os deputados. (4)

Mas o que podemos concluir de outras eleições ou países sobre estas matérias? Confirmam, ou desmentem as pretensas maravilhas da legitimidade, da representatividade, da redução da abstenção pelos «círculos uninominais» e de todas as outras propostas para as melhorar?

Como se sabe, por cá foi-se implantando e desenvolvendo, como quem não quer a coisa, o «presidencialismo» dos presidentes (não é um pleonasmo!) de câmaras e mesmo dos presidentes de juntas de freguesia. Que é uma outra forma de obter o resultado dos «círculos uninominais»! Focar, concentrar na cara, na personalidade, em traços histriónicos ou popularidades desportivas ou artísticas do candidato, para disfarçar, ocultar o programa político e as opções políticas. Para que a disputa eleitoral seja absorvida por essa focagem. O que, juntamente com a abertura da possibilidade de eleição por grupos de «cidadãos independentes» (como A. Barreto e outros também querem para as legislativas), tiveram resultados maravilhosos, mas não os que os seus promotores anunciavam. Será que conhecemos hoje muito melhor os presidentes das câmaras e houve mesmo uma outra aproximação aos cidadãos? Reduziu-se o compadrio e o caciquismo, e mesmo a corrupção, no exercício das suas funções? Cresceu o n.º de votantes e diminuiu a abstenção? Melhorou substancialmente a gestão municipal? As melhorias indiciadas aconteceram mesmo sem mudar de presidente. Bastou que o Presidente mudasse de veículo para ser eleito, de partido ou por grupo de cidadãos!!! Será cruel dar alguns exemplos e não vale a pena: toda a gente os conhece.

Mas é o olhar sobre os resultados de sistemas uninominais de votação noutros países que melhor pode ilustrar as maravilhas do sistema. Caso do Reino Unido, com um muito gabado e antigo sistema eleitoral de círculos uninominais. Seria bom que nos dissessem o que é que a política no Reino Unido, a forma de a fazer e o seu conteúdo, tem de melhor, ou pelo menos de diferente, face às políticas de países com sistemas maioritários por lista. Alguém será capaz de demonstrar os bons resultados do sistema uninominal inglês, inclusive no combate ao «populismo» e à «desafeição popular» aos partidos e à política? (5)

Por outro lado, silencia-se, esconde-se a completa distorção (talvez melhor, a inversão) da proporcionalidade votos/mandatos. Observemos a eleição de 2015, de que temos os resultados à mão. Ganha pelos conservadores, 36,9% dos votos premiados com uma maioria absoluta de mandatos, 331 (50,5%). Tiveram mais 0,8 pontos percentuais de votos, e mais 25 deputados que na eleição anterior. Os Trabalhistas (em 2.º lugar), com 30,4% dos votos, mais 1,4 pontos percentuais, alcançaram 232 mandatos, menos 26 deputados. Como é? Sobem de votação (e mais que os principais adversários) e descem de deputados! Para lá dos casos extraordinários do SNP/Escocês que com 4,3% dos votos, teve 56 mandatos em contrapartida ao UKIP (extrema-direita) com 12,6% dos votos e 1 (UM) deputado! Isto é a total distorção na transformação de votos em mandatos. Perguntarão alguns: porque não se queixam os Trabalhistas? Simples, na próxima são eles os beneficiados e os outros prejudicados! Uma coisa é garantida, ou ganham os Trabalhistas ou ganham os Conservadores. Uma bipolarização perfeita, inscrita como lei de ferro na defesa do capitalismo inglês! Não é por acaso que PS e PSD sonham há muito com coisa semelhante, sonho que outros replicam como o nosso Sábio do Sião anuncia.

E em matéria de redução da abstenção, e logo a melhoria da legitimidade e representatividade dos eleitos? Nas eleições britânicas a que nos estamos a referir (2015) a enorme capacidade mobilizadora deste sistema no combate à abstenção deu 33,9% de abstenção (tinha sido 34,9% em 2010)! Que deve estar muito próxima da abstenção real em Portugal. (6) Ou seja, um terço do eleitorado, mesmo com os tais círculos maravilha, e os tais deputados “bem conhecidos, bem ligados aos eleitores”, não votou – o que significa que os Conservadores tiveram um Governo suportado em 36,9% x 66,1% = 24,4% dos votos, menos de um quarto do total dos eleitores. É fraquinho!

As propostas e tentativas de alterar os sistemas eleitorais são em geral pura manobra de diversão face aos problemas do país. Enquanto nos preocuparmos e nos preocuparem com as regras eleitorais, tamanho dos círculos, n.º de deputados, n.º de freguesias, etc. Etc., esquecemos as opções políticas pela redução dos salários, degradação do SNS e atropelamento da Escola Pública, liquidação do investimento público, fretes aos grandes grupos económicas e cabeça baixa às imposições de Bruxelas, para sacrificar os mesmos de sempre: trabalhadores, pequenos empresários, reformados!

Manobra de diversão, que, centrando «a revolução» na mudança do sistema/regime eleitoral, absolvem as políticas que aqui nos conduziram, e afastam-se como discussão obrigatória dos problemas do país as questões nucleares da política: as opções e políticas, económicas e sociais, necessárias para uma alternativa real, de facto. Ficando pelo sistema eleitoral estamos a consolidar “a alternância”, no quadro da bipolarização, isto é, a falar da mudança superficial, formal, das políticas, e a pôr de lado as questões estruturais, de fundo, que podem ajudar a abrir outros caminhos para o país. De facto, o que os cultores dos «círculos uninominais» fazem é transformar as alterações do sistema eleitoral (como, aliás, de outras dimensões do regime político) em reforma estrutural, e mesmo na principal reforma estrutural, na linha de Ribeiro e Castro, que acha que com o sistema dos «uninominais» «provavelmente não teríamos tido a «bancarrota» nem a Troika»… E assim afastam a necessidade das reformas que, de facto, são necessárias (pese o pleonasmo).

Algumas destas teses têm ainda subjacente outro objectivo, sempre invisível, sempre submerso: a «despartidarização» da política e a «despolitização» dos partidos. Fica para outra vez a abordagem.

Acabe-se dizendo que todo este arrazoado não pretende transformar em obra perfeita o actual sistema eleitoral, ou julgá-lo insusceptível de melhorias, nomeadamente, com a criação de um «círculo eleitoral nacional» de compensação, aperfeiçoando a proporcionalidade.

NOTAS:

(1) António Barreto, «Sonho de uma noite de inverno», Público, 20JAN24. Todas as citações referidas no texto pertencem ao artigo.

(2) Os adeptos da redução do n.º de deputados, ou de um patamar percentual mínimo de votação para entrada no parlamento, também nunca percebem que as suas propostas distorcem/ratam a proporcionalidade! E põem em causa a representatividade do colégio eleitoral nacional.

(3) Isto é, fora de programas eleitorais partidários, orientações políticas, reuniões de grupo parlamentar porque mesmo tendo partido não devem aceitar as suas indicações.

(4) Um estudo sobre as «Eleições no Reino Unido – Efeito Brexit e Austeridade produzem surpresa eleitoral», em 2017, de Eunice Goes (Profª Associada na Universidade de Richmond), mostra como nem sequer a tese de A. Barreto sobre a melhoria na selecção de candidatos pelos partidos e dos temas da campanha, com o seu sistema, como resultado de uma descentralização da decisão para o «círculo» acontece: «(…) Theresa May convocou as eleições sem ter dado ao partido a oportunidade de fazer o trabalho de campo necessário para perceber os principais temas que preocupavam os eleitores nas várias regiões e nações do país. A falta de preparação também se fez sentir ao nível da selecção dos candidatos parlamentares. Esta foi feita de forma desorganizada e excessivamente controlada pelo centro do partido, o que gerou ressentimentos nas sedes locais conservadoras.»

(5) Tanta preocupação com o “populismo” e depois oferece-se mais um instrumento privilegiado: a forte polarização em candidatos e não em listas e projectos, nas campanhas em círculos uninominais, só pode dar-lhe gás. Qual projecto político, qual quê! Para quê partidos? Basta pertencer a um painel de comentadores da bola!

(6) Uma conclusão de um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (José S. Pereira (ISCTE), João Cancela (Nova-FCSH) e João B. Narciso (ISCTE)): «Em território nacional, a abstenção dos eleitores nacionais que vivem efectivamente em Portugal esteve, provavelmente, mais próxima dos 35% do que dos 42% em 2022».

QOSHE - Ainda os círculos uninominais - Agostinho Lopes
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Ainda os círculos uninominais

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05.02.2024

António Barreto não aborda no seu texto (1), como referimos, a distorção causada na transformação de votos em mandatos pelo seu sistema de círculos uninominais. Aliás, ao escolher um sistema de 230 círculos não lhe «sobram» deputados para um possível círculo nacional de compensação, reclamado por outros “viciados” nos círculos uninominais, invocando a sua necessidade para compensar aquela distorção. Aparentemente está pouco preocupado com a subversão de uma questão nuclear em eleições democráticas: um homem um voto, quem tiver mais votos deve proporcionalmente (mesmo se diversas as fórmulas da proporcionalidade) ter mais eleitos e ganhar as eleições! (2). Ou então, porque sabe que o tal «círculo nacional de compensação», que para alguns «limparia» a monstruosidade da desproporcionalidade do sistema «uninominal», é uma fraude política.

Um círculo nacional nunca travará a dinâmica eleitoral local e regional da votação uninominal, personalizada, antes a reproduzirá a nível nacional, submergindo a compensação de proporcionalidade que, em teoria, devia produzir. PS e PSD (e A. Barreto também) sabem de ciência certa que na maioria desses círculos seriam eleitos os seus candidatos! É uma patranha a história de um círculo nacional para compensar a proporcionalidade. A indução do voto útil nos uninominais não só não travará, como será transportada e transferida para esse círculo nacional, reproduzindo a bipolarização. Dinâmicas eleitorais e critérios mediáticos das disputas uni-pessoais irão rearrumar intenções de voto, submergir projectos e propostas políticas a favor dos protagonistas “com nome” na disputa uninominal, a favor de «messias» e outros salvadores.

Outra questão que A. Barreto não aborda são as consequências dos seus 230 círculos uninominais para a Assembleia da República – composição política e funcionamento. Os resultados políticos e institucionais são relativamente fáceis de prever. Teríamos uma Assembleia da República constituída por 230 deputados presidentes de junta de freguesia, sem qualquer menosprezo pelos presidentes de junta. Aliás, o raciocínio podia fazer-se com presidentes de câmara. Esses deputados não teriam qualquer laço político ou institucional entre eles. Mesmo pertencendo a um Partido, não estariam sujeitos à sua orientação e disciplina partidárias, a nenhum enquadramento institucional ou político, a não ser o que decorresse das encomendas da sua «comunidade eleitoral», eleitores do seu círculo uninominal. Mas o que levariam esses deputados não enquadrados (3) à Assembleia da República? É evidente que em teoria podia haver 230 programas eleitorais diferentes a concretizar (trabalhado e negociado na sua «comunidade eleitoral»). Que problemas e que iniciativas apresentariam? Teríamos provavelmente um excedente de problemas à dimensão do círculo e um défice de problemas de âmbito nacional, colmatado pelas iniciativas enviadas pelo governo, que ficaria na prática com o seu monopólio. Qual o espaço geográfico privilegiado de intervenção de cada um dos deputados presidentes da junta? O do seu círculo uninominal, ou o de todo o país, pois constitucionalmente são........

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