O artigo “O Partido duas vezes fora do tempo”, de Manuel Carvalho, no Público de 15 de Fevereiro, levanta perplexidades e não poucas, anotações críticas de desacordo. Mas é um texto fora do comum sobre o PCP, a merecer uma leitura e reflexão atentas.

A primeira perplexidade resulta da constatação de um anticomunista de largo espectro, com uma infindável colecção de textos e declarações navegando nessa onda, ser capaz de reconhecer ao PCP o “mérito de definir o seu lugar na política pela razão, coerência, sensatez e recato”, “princípios e valores”, o “seu modo/forma de ser e estar”, a “forma de estar e práxis política” e valorizar a sua importância para “a defesa da democracia” e “travar a degenerescência do debate político”.

Depois causa espanto que, sendo um jornalista com reconhecidas capacidades e qualidade (“que não evitam, obviamente, o juízo” sobre as suas opiniões), caia num texto importante em tantos (demasiados) lugares comuns, simplismos absurdos e velhos e revelhos preconceitos anticomunistas. A que se acrescentam avaliações, considerações, deturpações sobre o PCP, tendo como referência uma doutrina (de que MC não consegue fugir e seria difícil, reconheço) dominada por uma matriz neoliberal, com desenvolvimentos sociais-democratas à moda de Blair/Giddens, as teses do fim da história (Fukyama) e um campo mediático determinado pela propaganda e manipulação das centrais de informação e conspiração do imperialismo norte americano… e daí não sai. “Os talibans ideológicos” de que fala MC estão por toda a parte, inclusive por quem os produz e alimenta!

Debrucemo-nos hoje sobre algumas questões.

A segmentação/separação mecânica da imbricada “relação dialéctica” entre o “modo/forma de ser e estar” e a “forma de estar e a práxis política” do PCP e a sua “doutrina que configura o seu projecto”.

Tal divisão e distinção só mesmo é possível por visão defeituosa, deformada, da doutrina e projecto do PCP. Bem pelo contrário, o PCP está como está, e é como é, na actividade política, na forma da sua acção e intervenção, ontem e hoje, em Portugal e no mundo, com o sentido de ética política e coerência, serenidade e confiança histórica, razão e sensatez, porque fundado numa doutrina de combate à exploração e a todas as formas de opressão, por uma sociedade de justiça social e igualdade, por um regime político de liberdade e democracia (política, económica, social e cultural) que enforma e configura o seu projecto de socialismo e o sonho milenar da humanidade do comunismo. Não é distinguível o comportamento político do PCP do seu projecto e luta para o alcançar.

Os anacronismos atribuídos ao PCP por “acreditar num mundo onde o proletariado e a luta de classes ainda existem”, onde “a mitologia da vanguarda da classe operária fizesse sentido”.

Poderia responder-se ao MC com o conhecido “Olhe que não, olhe que não”, mas é lamentável, certamente porque sofre de particular, mas muito comum, cegueira ideológica, não enxerga o que se está a passar à frente dos seus olhos, mesmo neste pequeno rectângulo que é o país.

MC não consegue identificar, associar, as lutas, mesmo as de «sindicatos inorgânicos» que refere no artigo (professores, polícias (1), agricultores, e poderia acrescentar motoristas de pesados e enfermeiros), a lutas de classes! E há outras que não vê mesmo, e percebe-se: o “seu” jornal (e outros outros órgãos de comunicação social), nomeadamente enquanto foi seu director, não as vê, não são notícia, como sucede com dezenas de pequenas e grandes lutas promovidas por “sindicatos orgânicos” e até mesmo algumas espontâneas! Não enxerga, por exemplo, a longa e significativa e persistente luta que o CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal vem conduzindo há anos com a participação de centenas/milhares de trabalhadores e trabalhadoras da Grande Distribuição (Continente, Pingo Doce, LIDL, Mercadona, etc.), incluindo as Operadoras de Caixas, e de que MC também aqui há poucos anos lamentava no seu jornal a desatenção e ausência sindical (ao mesmo tempo que fazia idêntica lamúria para os trabalhadores dos Barcos de Turismo do Douro)! Mas devia perceber agora melhor as lutas que têm acontecido com trabalhadores e pequenos empresários ao serviço das plataformas da UBER e C.ia que aqui há anos lhe mereceu um artigo, “A impunidade do taxismo-leninismo” (02OUT16) a invectivar quem procurava defender os interesses dos taxistas e desses outros proletários motoristas TVDE, sujeitos à exploração desenfreada das multinacionais – estiveram em luta com uma concentração junto da Assembleia da República a 21FEV24.

Justificava-se também que fizesse uma reflexão aprofundada sobre os ditos “sindicatos inorgânicos”, o seu papel e objectivos. Pois não são novidade nenhuma: foram e são um antiquíssimo instrumento do patronato e forças políticas – da extrema-direita e direita à social-democracia – na divisão, diversão e perturbação das lutas e órgãos de classe dos trabalhadores. E não ficaram apenas por “sindicatos inorgânicos”. Não. Como bem sabemos criaram “orgânicos” e até uma central sindical… A que se deve acrescentar a análise do comportamento da “comunicação social tradicional” que fica histérica, ou quase, perante essas lutas e movimentações em contrapartida ao habitual silêncio (espesso e longo) que em geral faz cair sobre as lutas levadas a cabo pelas organizações de classe dos trabalhadores e de outras camadas sociais como pequenos e médios agricultores.

Seria bom ver MC fazer um balanço das manifestações da CNA em Lisboa noticiadas pelo Público e… auto-criticar-se. Mesmo sobre o desencadeamento e condução das acções de protesto e reclamação que aconteceram nas últimas semanas é muito insuficiente e parcial a informação de MC sobre o monopólio da iniciativa e mobilização que atribui aos “inorgânicos”.

Sobre este assunto seria ainda de aconselhar MC a consultar estudos e publicações de algumas escolas superiores de sociologia portuguesas (mas poderia também consultar universidades dos EUA e da França, e etc.!). Veria que se continuam a estudar as “classes sociais”, as “lutas de classes” e o seu papel nas lutas sociais e políticas.

O PCP permanece também no reino das antiguidades por continuarem (“o partido e o seu líder”) “a interpretar o mundo e a querer mudá-lo como se a era digital não existisse”.

Aqui há uma certa preguiça, porque com alguma facilidade MC verificaria que o PCP não só conhece a “era digital”, como tem reflectido e analisado as suas consequências em diversos planos, englobando-a na “práxis política”. Que outro partido português realizou um debate sobre “desenvolvimento tecnológico – novas e velhas questões” (Abril de 2017)? Nem poderia ser de outra forma para quem a revolução das forças produtivas pelo capital é um motor da caducidade dos modos e relações de produção! O que não impede denunciar e contrariar a reiterada ilusão dos advogados e clérigos do sistema capitalista que vêm em cada avanço tecnológico a resposta milagrosa às contradições, impasses e misérias do sistema, o que dispensaria a revolução social para lhe pôr fim e abrir caminho ao socialismo.

Seria talvez de sublinhar, aproveitando a deixa de MC, que “estão fora do tempo” os que não compreendem que a revolução tecnológica em curso (que, aliás, não se limita à vertente digital) é um poderoso sinal do esgotamento do sistema capitalista, inclusive pelos obstáculos que levanta à concretização das suas imensas potencialidades económicas, sociais, culturais para o bem-estar e felicidade da humanidade.

A ancoragem do PCP numa “Retórica capitalista conservada na cera de um mundo que já não existe”, que integra um “ódio visceral à iniciativa privada”, ao liberalismo e a um mundo global”, razão de ser “para a obsolescência da doutrina que configura o seu projecto”.

Exageros de MC, que parece pouco atento ao que se passa no mundo que existe e onde existimos todos. A “doutrina” do PCP, o marxismo e o leninismo, permite investigar e analisar, compreender e apreender nas suas dinâmicas económicas e sociais os impactos da tal revolução tecnológica; perceber a resistência política e ideológica da oligarquia e dos oligarcas (de todo o mundo) à superação do capitalismo e à derrota do imperialismo; perceber a necessidade da luta e da solidariedade dos trabalhadores e dos povos contra a exploração económica das classes trabalhadores e povos colonizados e neocolonizados, contra a opressão e subjugação de países soberanos, contra a guerra e pela paz.

É estranho que não se esteja atento aos sinais que especialistas e teóricos de nomeada, professores de ilustres universidades americanas e europeias, prémios nóbeis, defensores do capitalismo, dentro do “mainstream” e ortodoxia económica clássica, preocupados com a saúde do sistema capitalista, levantam à sua continuidade, à sua viabilidade, aos seus percalços e impasses. Lembram-se, entre muitos, dois livros recentemente publicados: “A crise do capitalismo democrático” de Martin Woolf e “Capitalismo apenas – o futuro do sistema que domina o mundo” de Branko Milanovic, em que não se esquecem referências a Marx. Até os oráculos do Forum de Davos vieram mais de uma vez, com a tese do “capitalismo dos stakeholders” arengar sobre a necessidade de mudanças “radicais” no sistema (naturalmente sem revolução social!). Mas talvez estejam todos “fora do tempo”… como o PCP!

Por outro lado, será mesmo que o PCP mostra no seu “discurso”, na sua práxis, nos seus documentos e intervenção política e parlamentar o vezo de um “visceral ódio contra a iniciativa privada”??? Onde? Como? Alguns procuram uma formulação mais mitigada: o PCP defenderia as pequenas empresas/MPME e seria só contra “grandes empresas”, logo contra a “grande iniciativa privada”. Outros ainda, é que o PCP é contra os lucros, logo o desejo de que tenham prejuízo! É só poeira atirada aos olhos dos empresários! Como bem sabem muitas associações e confederações patronais com quem, ao longo dos anos, temos tido encontros e frutuosos diálogos! Como está espelhado no Programa do PCP e em inúmeros programas eleitorais. Como está demonstrado nas inúmeras iniciativas legislativas e questionamentos parlamentares – o seu n.º pede meças a qualquer outro partido.

Quantas vezes terão estado jornalistas do Público em Encontros Nacionais do PCP sobre as MPME? É ao PCP que milhares de pequenas empresas devem a extinção do PEC – Pagamento Especial por Conta. Tudo sem nunca abdicar de negar uma viabilização e lucros das empresas à custa do sacrifício de salários e condições laborais dos trabalhadores, incumprimentos de obrigações fiscais ou agressões ambientais. Sem nunca deixar de combater – não as grandes empresas – mas sim os oligopólios e monopólios e a estrutura e domínio monopolista do tecido económico português, com efeitos predadores nas MPME pelos abusos de posições dominantes e dependência económica, com preços especulativos em bens e serviços essenciais, com lucros monopolistas (que parecem esquecidos por muita boa gente) e determinante na subordinação do poder político ao poder económico, em confronto com a Constituição.

Sem perder tempo com o “liberalismo”, uma verdadeira relíquia “fora do tempo” em que se queimavam as raízes e troncos ressequidos do feudalismo, agora recriado para ocorrer aos prejuízos do neoliberalismo (apagar a fogueira com gasolina), resta o que para MC é também o ódio “a um mundo global”. Será que os defensores do “internacionalismo proletário” recusam “um mundo global”??? Sim, contra o “mundo global”, hegemonizado pelo imperialismo, que pretende geri-lo pelas “regras” que ele próprio dita, hierarquizado segundo os seus interesses, e explorado sem limites pelo dólar e as suas corporações multinacionais – em que as próprias instituições do mundo global só servem quando cumprem as suas ordens e respeitam os seus interesses, como acontece por exemplo com a liberalização do comércio e a OMC, como sucede perante os nossos olhos com a ONU e as suas Resoluções! Sim, por um mundo global de cooperação e paz, com o respeito pela igualdade de direitos de todos os povos e nações, no respeito pelos acordos e tratados internacionais livremente negociados e aceites por todos.

(1) Será muito interessante e pedagógico, a propósito da lutas das forças de segurança, comparar o posicionamento hoje de PS, PSD, CDS e PCP com o que assumiram durante os acontecimentos dos “secos e molhados” em 1987, já em pleno reinado cavaquista!

QOSHE - O partido à frente do (seu) tempo (I) - Agostinho Lopes
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O partido à frente do (seu) tempo (I)

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26.02.2024

O artigo “O Partido duas vezes fora do tempo”, de Manuel Carvalho, no Público de 15 de Fevereiro, levanta perplexidades e não poucas, anotações críticas de desacordo. Mas é um texto fora do comum sobre o PCP, a merecer uma leitura e reflexão atentas.

A primeira perplexidade resulta da constatação de um anticomunista de largo espectro, com uma infindável colecção de textos e declarações navegando nessa onda, ser capaz de reconhecer ao PCP o “mérito de definir o seu lugar na política pela razão, coerência, sensatez e recato”, “princípios e valores”, o “seu modo/forma de ser e estar”, a “forma de estar e práxis política” e valorizar a sua importância para “a defesa da democracia” e “travar a degenerescência do debate político”.

Depois causa espanto que, sendo um jornalista com reconhecidas capacidades e qualidade (“que não evitam, obviamente, o juízo” sobre as suas opiniões), caia num texto importante em tantos (demasiados) lugares comuns, simplismos absurdos e velhos e revelhos preconceitos anticomunistas. A que se acrescentam avaliações, considerações, deturpações sobre o PCP, tendo como referência uma doutrina (de que MC não consegue fugir e seria difícil, reconheço) dominada por uma matriz neoliberal, com desenvolvimentos sociais-democratas à moda de Blair/Giddens, as teses do fim da história (Fukyama) e um campo mediático determinado pela propaganda e manipulação das centrais de informação e conspiração do imperialismo norte americano… e daí não sai. “Os talibans ideológicos” de que fala MC estão por toda a parte, inclusive por quem os produz e alimenta!

Debrucemo-nos hoje sobre algumas questões.

A segmentação/separação mecânica da imbricada “relação dialéctica” entre o “modo/forma de ser e estar” e a “forma de estar e a práxis política” do PCP e a sua “doutrina que configura o seu projecto”.

Tal divisão e distinção só mesmo é possível por visão defeituosa, deformada, da doutrina e projecto do PCP. Bem pelo contrário, o PCP está como está, e é como é, na actividade política, na forma da sua acção e intervenção, ontem e hoje, em Portugal e no mundo, com o sentido de ética política e coerência, serenidade e confiança histórica, razão e sensatez, porque fundado numa doutrina de combate à exploração e a todas as formas de opressão, por uma sociedade de justiça social e igualdade, por um regime político de liberdade e democracia (política, económica, social e cultural) que enforma e configura o seu projecto de socialismo e o sonho milenar da humanidade do comunismo. Não é distinguível o comportamento político do PCP do seu projecto e luta para o alcançar.

Os anacronismos atribuídos ao PCP por “acreditar num mundo onde o proletariado e a luta de classes ainda existem”, onde “a mitologia da vanguarda da classe operária fizesse sentido”.

Poderia responder-se ao MC com o conhecido “Olhe que não, olhe que não”, mas é lamentável, certamente porque sofre de particular, mas muito comum, cegueira ideológica, não enxerga o que se está a passar à frente dos seus olhos, mesmo neste pequeno rectângulo que é o país.

MC não........

© Expresso


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