Todos os dias, Penélope sentava-se para coser um manto. Uma vez concluído, casaria com um dos seus pretendentes. Mas, todas as noites, Penélope sabotava-se. Sentada, desfazia com as suas próprias mãos os avanços no manto que tinha costurado no dia anterior. Era esta a sua trágica rotina: construir e desfazer continuamente.

25 de novembro de 2023 foi auspicioso para o PSD. O congresso social-democrata foi bem-sucedido. Com a sala cheia e disponível para se entusiasmar deu-se o regresso surpresa de Cavaco Silva e um discurso mobilizador de Montenegro. O partido uniu-se ali em torno do seu líder, cheio de entusiasmo para a disputa eleitoral que se seguiria. Nesse congresso, Montenegro apresentou uma importante medida: até 2028, o rendimento mínimo garantido dos pensionistas aumentaria para, pelo menos, 820 euros.

Apesar da meridiana clareza daquela ideia, o verdadeiro significado da medida era outro e bastante mais limitado. A proposta pretendia, afinal e apenas, aumentar para 820 euros o valor de referência do Complemento Solidário para Idosos para os mesmos beneficiários, isto gradualmente ao longo de quatro anos.

Meses depois, já em fevereiro de 2024, foi apresentado o programa eleitoral da Aliança Democrática. Montenegro inscreveu aí a mesma proposta que enfatizou, com grande pompa, no debate sobre o programa do novo Governo: aprovar rapidamente uma proposta de lei para reduzir os impostos sobre os rendimentos do trabalho das famílias em cerca de 1.500 milhões de euros.

A noite veio entretanto e a proposta desfez-se: afinal não aprovará uma redução tão significativa dos impostos. Isso pelo simples facto de a quase totalidade dessa redução já ter sido aprovada em novembro de 2023 pelo Partido Socialista. Uma redução de impostos que já tinha sido concretizada no valor de cerca de 1.750 milhões de euros, dos quais 1.300 milhões de euros com impacto nas contas de 2024. Redução essa aprovada com o voto contra do PSD num orçamento duramente criticado por Montenegro.

Em ambos os casos, os telejornais abriram com as medidas anunciadas por Montenegro para consumo e entusiasmo geral. No entanto, como na história de Penélope, Montenegro apareceu sempre na noite seguinte para desfazer o que havia construído no dia anterior e nenhuma daquelas propostas correspondeu sequer de perto à sua grandiosa formulação original.

Porém, ao contrário de Penélope, Montenegro não o parece ter feito com intentos amáveis, mas antes com o desleixo de quem costura intencionalmente um manto de retalhos de equívocos conscientes e facilitações discursivas exageradas. Resta-nos apenas observar se Montenegro continuará a percorrer este perigoso trilho de ambiguidade política. Se assim for, a tragédia assemelhar-se-á mais ao destino de Sísifo: um governo condenado a trabalhar em vão, sem particulares sucessos ou grandes triunfos, até ao último suspiro do seu mandato.

QOSHE - Montenegro vê-se grego - Alexandre Ferreira
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Montenegro vê-se grego

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22.04.2024

Todos os dias, Penélope sentava-se para coser um manto. Uma vez concluído, casaria com um dos seus pretendentes. Mas, todas as noites, Penélope sabotava-se. Sentada, desfazia com as suas próprias mãos os avanços no manto que tinha costurado no dia anterior. Era esta a sua trágica rotina: construir e desfazer continuamente.

25 de novembro de 2023 foi auspicioso para o PSD. O congresso social-democrata foi bem-sucedido. Com a sala cheia e disponível para se entusiasmar deu-se o regresso surpresa de Cavaco Silva e um discurso mobilizador de Montenegro. O partido uniu-se ali em torno do seu líder, cheio de entusiasmo para a disputa eleitoral que se seguiria. Nesse congresso, Montenegro apresentou uma importante medida:........

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