1. Em plena crise da resolução do BES tive oportunidade de escrever (e de ser fortemente criticado por isso) que a decisão do Banco de Portugal era um erro que o país iria pagar muito caro.

O BES sempre foi mais do que um banco e todo o universo político e financeiro nacional e europeu sabia que assim era. Uma parte muito significativa das elites lusas viveu décadas na dependência deste agente bancário e empresarial, soube acomodar-se à lógica que a família Espirito Santo criou.

Tudo o que aconteceu tem dois responsáveis: 1) o Governador do Banco de Portugal e a instituição que liderava, incapaz de antecipar, fiscalizar e conformar a ação do Espírito Santo com as regras, a existirem, da supervisão; 2) o Governo de então, inapto que foi ao não entender a dimensão dos problemas que uma resolução iria trazer e cioso de uma certa visão de país atávico, assente na incapacidade de decidir perante situações graves.

Uma intervenção, que não uma resolução, teria salvado o BES e teria obrigado a um desmame do grupo BES. Teria promovido a necessária limpeza e responsabilização dos gestores sem que houvesse lesados diretos e também indiretos que acabaram por ser todos os portugueses.

2. O caso BES trouxe um vasto conjunto de factos que não são bons de ver. Todos eles, os que podem ser verdadeiros crimes, serão julgados e naturalmente condenados.

Há, no entanto, uma linha de comunicação muito nítida em todos os factos que se ligam ao BES – cada processo deveria servir para penalizar aquele que foi a cara do banco e todos aqueles que com ele se relacionaram advindos de um certo universo político.

Quando analisamos o caso Manuel Pinho, verificamos que ele só existe porque Pinho foi ministro. Sim, em pleno julgamento ficamos a saber que um sem número de quadros do banco recebia igualmente suplementos ou indemnizações através de contas no exterior, também essa enorme fila de serventes fugiu aos impostos. Porém, só Pinho está em prisão domiciliária, os outros, até um ex-familiar direto de uma magistrada que passou pelo processo, continuam a salvo e sem que se saiba quem são.

Esse é o outro país que convive bem com o grande princípio português dos “vícios privados e virtudes públicas”.

3. Ricardo Salgado está a ser julgado. Processos complexos onde se misturam procedimentos típicos da banca com indiciações de corrupção praticados pelo lado do GES. Em Inglaterra, naquela City que foi responsável pela saída do Reino Unido da União Europeia, qualquer quadro intermédio de um grande banco acharia os processos do BES uma patetice.

Não relativizo as acusações que são do conhecimento público. Não sou insensível a muitas das coisas que são difundidas pela imprensa, mas não sou ingénuo. O nosso país acerta contas com alguém muito importante a cada geração que passa. E esse acerto de contas é ainda mais marcante quando da família sai o delator.

Aguardo as sentenças. Tenho a minha apreciação moral sobre o que aconteceu e vai acontecendo. E essa apreciação moral não é favorável a Ricardo Salgado, só por culpa dele próprio.

Tal circunstância não me impede de considerar lastimável o que a justiça está a fazer a este cidadão.

Sujeito a exames médicos profundos por peritos de craveira internacional, foi-lhe diagnosticada a doença de Alzheimer. Os relatórios médicos foram entregues ao Tribunal que não só os analisou como teve oportunidade de ver, como todos os portugueses, o estado em que Salgado chegou ao Instituto de Medicina Legal.

Mesmo assim, foi obrigado a sentar-se no banco dos réus para depor, uma cena que já não tem ligação com o dever de fazer justiça, mas entra pela ignomínia. Alguém, no estado em que Salgado está, deixou de ter capacidade para se defender e o direito de autodefesa é inalienável.

Ricardo Salgado pode ser tudo o que dizem, pode vir a ser condenado em todos os casos em que é o alvo, mas é uma pessoa com a dignidade que a Declaração Universal dos Direitos do Homem lhe garante, com os direitos que a Constituição da República lhe concede.

O Tribunal também lhe retirou essas garantias mínimas. Já o condenou para a vida a uma pena que, num país civilizado como o nosso, não deveria existir e não pode ser tolerada – a de um homem despedido de si próprio. Para um cristão, como eu sou, tudo isto é insuportável.

QOSHE - Ricardo Salgado e a dignidade humana - Ascenso Simões
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Ricardo Salgado e a dignidade humana

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15.02.2024

1. Em plena crise da resolução do BES tive oportunidade de escrever (e de ser fortemente criticado por isso) que a decisão do Banco de Portugal era um erro que o país iria pagar muito caro.

O BES sempre foi mais do que um banco e todo o universo político e financeiro nacional e europeu sabia que assim era. Uma parte muito significativa das elites lusas viveu décadas na dependência deste agente bancário e empresarial, soube acomodar-se à lógica que a família Espirito Santo criou.

Tudo o que aconteceu tem dois responsáveis: 1) o Governador do Banco de Portugal e a instituição que liderava, incapaz de antecipar, fiscalizar e conformar a ação do Espírito Santo com as regras, a existirem, da supervisão; 2) o Governo de então, inapto que foi ao não entender a dimensão dos problemas que uma resolução iria trazer e cioso de uma certa visão de país atávico, assente na incapacidade de decidir perante situações graves.

Uma intervenção, que não uma resolução, teria salvado o BES e teria obrigado a um desmame do grupo BES. Teria promovido a necessária limpeza e........

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