Nos últimos tempos, temos visto uma direita governativa a crescer no mundo ocidental. O que é que isto significa? Que, automaticamente, os direitos das mulheres, da comunidade LGBTQ e imigrantes estão em risco. Sempre foi assim, mas sempre haverá contestação e defesa dos direitos humanos. Estas minorias de poder (mas não de quantidade populacional) são sempre tratadas como “as outras pessoas”, “aquelas pessoas”, numa perspetiva de cisma entre “nós” e “os outros”. Ora, eu pergunto: não fazemos parte da mesma sociedade? Não somos todos seres humanos?

Neste contexto, tem-se falado imenso de “ideologia de género”, nos media, nos partidos de direita, em livros e artigos. No entanto, a verdade é que não existe “ideologia de género” na prática, apenas nas teorias ideológicas nas mentes em delírio de conservadores contra a aceitação da diversidade. Este termo, cunhado pela Igreja Católica, no final dos anos 90, destina-se a designar de forma depreciativa o termo “identidade de género”. Esta troca de “identidade” para “ideologia” pressupõe a crença, errada, de que há uma doutrina de conversão (veja-se o exemplo da Doutrina Católica) levada a cabo pelas pessoas LGBTQ, no sentido em que acreditam, erradamente, que a comunidade LGBTQ tem como objetivo transformar pessoas hetero em homossexuais e pessoas cis em transgénero. Longe disso. A comunidade LGBTQ luta pelo direito de podermos manifestar a nossa orientação sexual e identidade de género com liberdade, sejam elas quais forem.

Pois bem, chama-se orientação sexual e não escolha sexual (como já venho a dizer há muito, graças ao livro de Ruth Manus) e chama-se identidade de género e não escolha voluntária de género. As pessoas não conseguem mudar a sua identidade de género real só porque alguém lhes disse que a que têm “é errada”. Acho que não é difícil de perceber, pelas altas taxas de tentativa e efetivo suicídio de pessoas LGBTQ, que é bem mais fácil ser hetero e cisgénero nesta sociedade do que gay e transgénero. Logo, ao se ser trans ou gay atravessam-se vários entraves a nível social e laboral. É, ainda, importante realçar, que esta alta taxa de tentativa de suicídio não se deve necessariamente ao facto de serem LGBTQ, mas sim à falta de aceitação social e familiar dessa realidade.

Ora, para todas as pessoas cis que dizem que não se identificam com “cis”, honestamente, é falta de informação e aceitação de diversidade. Se em vez de dizerem “estou a comer batatas” disserem “estou a comer um tipo de tubérculos”, isso não faz com que seja menos verdade estarem a comer batatas. É só uma questão de nome. Se se identificam com o género que vos foi atribuído à nascença conforme o órgão genital com que nasceram, são cisgénero. Tão simples quanto isso.

Dito isto, é muito curioso, e simultaneamente expectável, que num espaço de um mês após as eleições, tenhamos regredido no logo do Governo, tenha sido lançado um livro sobre “Identidade e Família”, heterocêntrico e conservador, e que o Arraial dos Cravos em Lisboa tenha sido cancelado nos moldes habituais, por falta de apoio logístico da Câmara de Carlos Moedas. (Com certeza acontecerá na mesma, porque força popular não falta).

Dito isto, mesmo quando se fala de inclusão da comunidade LGBTQ, maioritariamente fala-se de uma perspetiva heterocêntrica: a pessoa hetero que aceita “aquelas pessoas”, que aceita “os outros”. Claro que isto é importante, tendo em conta a vaga de não tolerância que atravessamos. No entanto, esta realidade, que vai desde a colega de trabalho ao Papa Católico, só mostra que a maior parte dos lugares de fala, das posições de destaque, das pessoas que têm acesso a uma plataforma grande onde se fazem ouvir, são heterossexuais e cis. Se por um lado é importante que as pessoas hetero cis usem o seu lugar de fala para promover a inclusão, por outro lado também é gritante a falta de acesso a grandes plataformas que as pessoas LGBTQ têm na generalidade.

As pessoas trans, gay, bi, queer não são as “outras pessoas”. Sou eu, a tua prima, a avó da amiga, a tia do amigo, a cunhada do irmão, filhe da melhor amiga. A inclusão não pode ser representada sempre em “nós, hetero” e “os outros, não hetero”. Mas, olhem, como as coisas estão, pelo menos que se promova a inclusão de alguma forma, que já não é tão mau quanto apelar a uma família tradicional a todo o custo.

Como disse a personagem “Callie” em Anatomia de Grey: “You cannot pray the gay away”.

Para concluir, não se esqueçam que quando um lado começa a gritar mais alto, o outro também. Onde houver perseguição à diversidade, a diversidade revoltar-se-á e erguer-se-á mais forte.

Se houvesse mais empatia, haveria menos estupidez.

Para a semana sai um artigo sobre a realidade de ser homossexual durante o Estado Novo. Até lá, de cravo ao peito.

Sugiro que vejam com atenção o vídeo da sexóloga Tânia Graça sobre o termo “ideologia de género”.

Preparem já a leitura do próximo artigo com o ensaio de por Raquel Afonso “Memórias de homossexuais e lésbicas no Estado Novo: da repressão à resistência quotidiana.

QOSHE - A ideologia de género só existe em delírios de conservadores de direita - Clara Não
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

A ideologia de género só existe em delírios de conservadores de direita

17 15
23.04.2024

Nos últimos tempos, temos visto uma direita governativa a crescer no mundo ocidental. O que é que isto significa? Que, automaticamente, os direitos das mulheres, da comunidade LGBTQ e imigrantes estão em risco. Sempre foi assim, mas sempre haverá contestação e defesa dos direitos humanos. Estas minorias de poder (mas não de quantidade populacional) são sempre tratadas como “as outras pessoas”, “aquelas pessoas”, numa perspetiva de cisma entre “nós” e “os outros”. Ora, eu pergunto: não fazemos parte da mesma sociedade? Não somos todos seres humanos?

Neste contexto, tem-se falado imenso de “ideologia de género”, nos media, nos partidos de direita, em livros e artigos. No entanto, a verdade é que não existe “ideologia de género” na prática, apenas nas teorias ideológicas nas mentes em delírio de conservadores contra a aceitação da diversidade. Este termo, cunhado pela Igreja Católica, no final dos anos 90, destina-se a designar de forma depreciativa o termo “identidade de género”. Esta troca de “identidade” para “ideologia” pressupõe a crença, errada, de que há uma doutrina de conversão (veja-se o exemplo da Doutrina Católica) levada a cabo pelas pessoas LGBTQ, no sentido em que acreditam, erradamente, que a comunidade LGBTQ tem como objetivo transformar pessoas hetero em........

© Expresso


Get it on Google Play