Quando Afonso de Albuquerque chegou a Mascate, encontrou uma cidade muito grande e populosa, com um porto abrigado de todos os ventos. A presença portuguesa no país, embora muitas vezes pouco reconhecida, deixou uma marca indelével no desenvolvimento do comércio marítimo na região. Durante séculos, os portugueses estabeleceram uma presença significativa nas águas do Mar Vermelho e do Oceano Índico, contribuindo para a interconexão dos mercados e culturas do Oriente e do Ocidente. Essa permanência histórica e o impulso dado ao comércio ecoam na realidade contemporânea, destacando a importância estratégica dessas vias navegáveis.

Os ventos que hoje sopram sobre o Golfo de Omã são brisas suaves que posicionam Mascate como um ponto de observação singular para compreender o Médio Oriente e as complexidades da atual situação geopolítica mundial. Neste ponto de encontro entre culturas e comércio, a percepção da instabilidade política é particularmente evidente. O Golfo Pérsico está a atravessar um período histórico de transformações políticas e reconfiguração da segurança, cujo impacto promete ser duradouro na região. Os principais atores neste contexto incluem a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, os Estados Unidos, o Qatar, o Irão e a China.

A interação entre esses atores e as suas lideranças irá delinear o cenário emergente. Contudo, é possível observar que o sistema regional é moldado pela forma como os países da região procuram influenciar e controlar tanto o Estado como os atores não estatais, dificultando a compreensão dos interesses de cada um e, muitas vezes, resultando em mudanças imprevisíveis. As atuais relações entre os estados do Golfo, embora marcadas pela competição, também são impregnadas de interesses tangíveis. A paz e a estabilidade são prioritárias e qualquer divergência deve ser resolvida por meio do diálogo e da diplomacia, evitando-se o recurso a medidas que possam comprometer o equilíbrio regional.

Talvez o ator mais ambíguo na geopolítica seja o Irão. Porém, a sua política externa tem-se pautado por relações estáveis com os seus vizinhos, principalmente com o foco na Ásia. Para Teerão, a adoção de uma estratégia de atrito em vez de um confronto militar direto revela-se mais vantajosa, uma vez que não pretende entrar em guerra nem com Israel, nem com os Estados Unidos. O objetivo subjacente é realizar ataques de intensidade moderada numa escala limitada para infligir custos e, ao mesmo tempo, demonstrar as suas capacidades, com o intuito de sustentar a longo prazo esta abordagem. Por outro lado, a questão do apoio que o Irão oferece a outros grupos tem limites, e a sua intenção não é provocar um conflito ou antagonizar as novas relações estabelecidas com a Arábia Saudita. O perigo do apoio reside no facto de que, muitas vezes, os grupos proxy não podem ser totalmente controlados, podendo gerar situações de elevada tensão que, por sua vez, poderiam desencadear um conflito de maiores proporções e alterar a dinâmica geopolítica da região de forma imprevisível.

Nesta conjuntura de mudanças, há igualmente elementos de continuidade. Washington continuará a ter uma presença militar proeminente, ao passo que as parcerias emergentes entre a China e os países do Golfo são compatíveis com os interesses norte-americanos. De facto, os interesses económicos chineses serão acomodados, assim como os de outras potências. Por outro lado, a região é também marcada pela incerteza em relação à tragédia na Palestina e às implicações imprevisíveis que daí advirão, sem que se tenha uma visão clara dos moldes que a resolução do conflito poderá assumir num futuro próximo. A viabilidade da solução de dois estados já não é amplamente aceite, o que complica ainda mais qualquer tentativa de alcançar a paz, tornando a situação extremamente volátil.

A instabilidade no Iémen reflete as tensões relacionadas com os Houthis e as possíveis repercussões globais. No entanto, é crucial reconhecer que uma perturbação no Mar Vermelho, embora de significância considerável, não se equipara à gravidade de um conflito plenamente desencadeado na região. Neste contexto, o discurso político no Golfo assume uma nova importância, destacando a necessidade de manter as linhas de comunicação abertas com todos os intervenientes, incluindo atores não estatais, como parte integrante do processo para alcançar acordos que possam pavimentar o caminho rumo à paz. Os Estados Unidos entendem esta abordagem e estão cientes da indispensabilidade de contar com aliados capazes de facilitar a comunicação tanto com o Irão como com o Hamas. O elemento que pode redefinir o rumo das transformações na região são as eleições americanas e a possível nova administração, que, por sua vez, delineará uma nova política externa, dependendo de quem conseguirá um segundo mandato para a presidência. Assim sendo, estamos diante de um cenário ainda incerto e sujeito a alterações.

Quando os portugueses foram expulsos de Omã, as rotas de comércio e navegação do Mar Vermelho e Oceano Índico continuaram a ser utilizadas, possibilitando novas conexões e o surgimento de impérios que almejavam controlar a região. Posteriormente, sucederam-se os persas e, em seguida, os britânicos, seguidos pela notória pax americana. Nos dias de hoje, o mundo está em processo de transição, no qual tanto o Médio Oriente como o Sul Global estão mais alinhados em termos de interesses de desenvolvimento económico e social do que as nações ocidentais. Ambas as regiões procuram ancorar-se num ambiente mais multipolar e promover um sistema multiplexo que leve em consideração as suas diversas vozes, experiências e conhecimentos.

Enquanto as nações ocidentais debatem e procuram uma nova ordem global, a falta de visão e perspicácia europeia é evidente, especialmente face às dinâmicas geopolíticas em constante mutação e à crescente complexidade das relações internacionais. De Mascate, essa mudança de dinâmica é palpável, revelando um conhecimento limitado e muitas vezes orientalista sobre a região por parte do Ocidente. Por conseguinte, a visão binária das análises conduz a inúmeras decisões de política externa que culminam em estratégias e políticas de eficácia duvidosa. Estando no Médio Oriente, deparo-me com a presença cada vez mais marcante da era política da alienação e dissensão, sendo necessário confrontá-la. Em vez de estranhar o mundo em transição, precisamos de redescobri-lo, e desta vez, com outros olhos e maior discernimento.

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QOSHE - De Mascate para um mundo em transição - Corina Lozovan
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De Mascate para um mundo em transição

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15.04.2024

Quando Afonso de Albuquerque chegou a Mascate, encontrou uma cidade muito grande e populosa, com um porto abrigado de todos os ventos. A presença portuguesa no país, embora muitas vezes pouco reconhecida, deixou uma marca indelével no desenvolvimento do comércio marítimo na região. Durante séculos, os portugueses estabeleceram uma presença significativa nas águas do Mar Vermelho e do Oceano Índico, contribuindo para a interconexão dos mercados e culturas do Oriente e do Ocidente. Essa permanência histórica e o impulso dado ao comércio ecoam na realidade contemporânea, destacando a importância estratégica dessas vias navegáveis.

Os ventos que hoje sopram sobre o Golfo de Omã são brisas suaves que posicionam Mascate como um ponto de observação singular para compreender o Médio Oriente e as complexidades da atual situação geopolítica mundial. Neste ponto de encontro entre culturas e comércio, a percepção da instabilidade política é particularmente evidente. O Golfo Pérsico está a atravessar um período histórico de transformações políticas e reconfiguração da segurança, cujo impacto promete ser duradouro na região. Os principais atores neste contexto incluem a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, os Estados Unidos, o Qatar, o Irão e a China.

A interação entre esses atores e as suas lideranças irá delinear o cenário emergente. Contudo, é possível observar que o sistema regional é moldado pela forma como os países da região procuram influenciar e controlar tanto o Estado como os atores não estatais, dificultando a compreensão dos interesses de cada um e, muitas vezes, resultando em mudanças imprevisíveis. As........

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