Os resultados das últimas eleições presidenciais russas confirmam, sem surpresa, um conjunto de tendências conhecidas de todos nós. Mas uma delas está a dominar especialmente o debate entre analistas e comentadores: Putin quer ser o novo Estaline?

A tentativa de recuperar um projeto imperialista e de regressar a um período histórico que remonta à era soviética e, em particular, ao Estalinismo, é inequívoca. À semelhança de Estaline, Putin não crê na autonomia e na indissociabilidade de um conjunto de países (antigas repúblicas soviéticas) face ao poder central moscovita. A guerra na Ucrânia, que em rigor começou em 2014 com a anexação da Crimeia, é o apogeu desta predisposição e desta retórica que, não tenhamos ilusões, visam um regresso à geografia europeia que julgávamos ultrapassada no pós-1991.

Depois dos resultados de domingo, tornou-se quase óbvio que Putin não está só a perseguir o projeto Estalinista fora da Rússia. Também está a fazê-lo dentro dela. Estaline esteve no poder durante quase trinta anos, entre 1924 e 1953 (porque morreu, ou mais trinta anos lá teria ficado). Putin, por seu turno, só precisa de completar o mandato que agora inicia para ultrapassar este feito tão próprio de um ditador: passar uma vida a mandar. Tendo em conta o que atual líder já nos mostrou ao longo do último quarto de século, não seria surpreendente constatar que, por detrás deste exercício de prorrogação sucessiva de poder, estivesse um elemento de vaidade e ambição pessoais, altamente alimentado pelo espírito competitivo do autocrata russo. Mas será que, para poder entrar nesta competição de timings com o “antecessor” Estaline, dando aso ao desejo de eternizar a sua posição de liderança na Rússia, Putin precisava mesmo do aval popular? Não propriamente.

Desde 2000, Putin tem vindo a criar e/ou transformar mecanismos políticos, legais e constitucionais com o intuito de garantir a sua estadia no Kremlin, pelos vistos, até morrer. Ainda assim, e do ponto de vista administrativo, as eleições são um pretexto útil para que, internamente, esta estadia, por mais prolongada que seja, não possa ser posta em causa. Trata-se de um proforma que ajuda a garantir a teatralidade associada ao cumprimento (fingido) dos termos de uma liderança legítima.

Além disso, o ato eleitoral confere a Putin uma espécie de presunção democrática, de que Estaline, por exemplo, não gozava, já que era eleito por um comité central. Esta aprovação popular, a rondar a casa dos 88% nas eleições do fim de semana passado, é o carimbo democrático que Putin julga ser suficiente para legitimar a perpetuação da sua ditadura na Rússia: são as pessoas quem pede esta perpetuação, pensará ele no seu íntimo. Sabemos que assim não é.

A confirmação acerca das verdadeiras escolhas dos russos obrigaria a Rússia a transformar praticamente de modo integral todo o sistema político e o modus operandi do regime sobre o povo: era preciso existir liberdade de expressão, de imprensa e de associação; era preciso existir educação e instrução políticas; era preciso existir oposição livre (e viva); era preciso existir cobertura internacional para garantir a legalidade de um ato eleitoral levado a cabo pela força da propaganda e, se necessário, dos braços dos militares ao serviço do regime.

Não existe uma sociedade civil na Rússia e isso explica o que vários autores (mesmo alguns de nacionalidade russa) consideram ser uma psicologia esclavagista do povo russo. Um elemento cultivado desde a Rússia dos Czares para educar as pessoas não para a participação nem para a discussão, mas para a apatia e para a inércia mentais. É muito mais fácil dominar uma sociedade inteira sem conhecimentos do que um pequeno grupo de pensadores informados.

Pela sua herança histórica tão intrinsecamente ligada a formas de ditaduras e ditadores, os russos, sem culpa, não foram habituados ao cultivo do que poderia fazer frente a esta apatia e a esta inércia: formação, livros, imprensa, debate. Como uma criança a quem os pais proíbem constantemente tudo, o povo russo foi formatado para não saber agir perante a liberdade de escolher. Por isso, ainda que inconscientemente, os russos parecem preferir a “segurança” associada a um pulso forte, que tome as rédeas de todo o poder e faça discursos paternalistas acerca do que é melhor para todos (quando cada um é que deve saber o que é melhor para si).

Só esta sensação de (falsa) segurança pode explicar a percentagem recorde de 88% que ficámos a conhecer no final dos três dias de eleição. Esta fatia gigante de russos pôs a cruzinha no nome de Vladimir, sim, e nós questionamo-nos: o que esperam estas pessoas? Certamente não a sua miséria pessoal nem a desonra do seu país, mas o conforto de ter um homem obcecado pela subsistência da sua nacionalidade.

Como noutras ditaduras, pense-se na portuguesa, por exemplo, o patriotismo ocupa um lugar fundamental na propaganda Putinista, que obriga os russos a colocar a Rússia à frente da própria vida. O que estes russos não veem, porém, e novamente sem culpa, é que não é a Rússia que estão a colocar à frente da sua própria vida: é a ambição de um homem russo, que quer falar em nome de todos os russos.

Estaline, como Putin, também queria falar em nome de todos os russos. Julgava, aliás, ser ele a Rússia, num modelo totalitário de poder em que não existe distinção entre o líder e o Estado. Provavelmente mais do que no caso nazi, a ditadura Estalinista atingiu vários cúmulos neste domínio da personificação do poder e do culto do chefe. Depois da morte de Estaline, ainda foram necessários três anos até à primeira denúncia dos crimes e do terror daqueles anos. Nikita Khruscshev foi o autor desta denúncia, num momento nevrálgico da história da União Soviética: o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, a 25 de fevereiro de 1956.

Este congresso e esta denúncia (embora relativamente tímida) foram tão importantes que dividiram a história do país em dois grandes períodos: o pré e o pós-Estaline. Porque a vida depois de Estaline nunca mais foi a mesma. Ainda hoje persistem os traumas familiares, as histórias dos avós e bisavós, as cicatrizes de uma das fases mais tristes de todo o século XX. Foram os anos imediatamente após este congresso que viram nascer uma geração diferenciada de homens e mulheres soviéticos. Eram conhecidos como “os Filhos do Vigésimo Congresso”. Mikhail Gorbatchov é um deles. Tinha 25 anos quando ouviu Khruscshev reconhecer os crimes do Estalinismo. Era uma desilusão para aqueles jovens, como Gorbatchov, ver desmantelados tantos anos de mentiras propagandísticas, mas a verdade estava à frente dos olhos de quem a quisesse ver. Foi a partir dali que a crença inabalável na divindade Estalinista deixou de o ser, e um conjunto de mentalidades transformadoras, como a de Gorbatchov, começou a brotar daquele espírito de ligeira, ligeiríssima, transparência.

Hoje, as lições da experiência Estalinista estão a ficar demasiadamente esquecidas entre as gerações mais novas. Mas é impreterível lembrá-las, porque um novo Estaline está em ascensão. Só não sabemos se, à semelhança de 1985, ascenderá também na Rússia do século XXI um novo Gorbatchov que, perante a evidência de um mundo novo, compreenda que a História e a geografia do passado não se recuperam: respeitam-se.

QOSHE - Putin é o novo Estaline? - Daniela Nunes
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Putin é o novo Estaline?

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19.03.2024

Os resultados das últimas eleições presidenciais russas confirmam, sem surpresa, um conjunto de tendências conhecidas de todos nós. Mas uma delas está a dominar especialmente o debate entre analistas e comentadores: Putin quer ser o novo Estaline?

A tentativa de recuperar um projeto imperialista e de regressar a um período histórico que remonta à era soviética e, em particular, ao Estalinismo, é inequívoca. À semelhança de Estaline, Putin não crê na autonomia e na indissociabilidade de um conjunto de países (antigas repúblicas soviéticas) face ao poder central moscovita. A guerra na Ucrânia, que em rigor começou em 2014 com a anexação da Crimeia, é o apogeu desta predisposição e desta retórica que, não tenhamos ilusões, visam um regresso à geografia europeia que julgávamos ultrapassada no pós-1991.

Depois dos resultados de domingo, tornou-se quase óbvio que Putin não está só a perseguir o projeto Estalinista fora da Rússia. Também está a fazê-lo dentro dela. Estaline esteve no poder durante quase trinta anos, entre 1924 e 1953 (porque morreu, ou mais trinta anos lá teria ficado). Putin, por seu turno, só precisa de completar o mandato que agora inicia para ultrapassar este feito tão próprio de um ditador: passar uma vida a mandar. Tendo em conta o que atual líder já nos mostrou ao longo do último quarto de século, não seria surpreendente constatar que, por detrás deste exercício de prorrogação sucessiva de poder, estivesse um elemento de vaidade e ambição pessoais, altamente alimentado pelo espírito competitivo do autocrata russo. Mas será que, para poder entrar nesta competição de timings com o “antecessor” Estaline, dando aso ao desejo de eternizar a sua posição de liderança na Rússia, Putin precisava mesmo do aval popular? Não propriamente.

Desde 2000, Putin tem vindo a criar........

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