Tive a desventura de passar os últimos anos sentado num dos lugares mais próximos da bancada do Chega, quando o Governo ia à Assembleia da República. Não desejo a ninguém a proximidade que tive, que me deu a oportunidade de testemunhar a forma como tudo e todos eram desrespeitados a cada momento.

O problema não estava, na maior parte das vezes, nas intervenções de microfone aberto, que já de si se pautavam por aquilo que todos podíamos ouvir. A natureza sórdida dos apartes, dos comentários entre os deputados, dos dichotes, sem educação básica, com formas indignas de tratar os deputados (e em particular algumas deputadas), fez com que pudesse assistir a uma degradação da dignidade de atitudes na Assembleia que julgava impossível, a partir do momento em que aquele grupo parlamentar se formou.

Terei oportunidade de descrever esta mudança com mais pormenor. Senti muitas vezes vergonha alheia pelo que os alunos que se sentavam nas galerias viam. Tive oportunidade de apontar como quem tanto clamava pela disciplina nas escolas dava o maior exemplo do que não pode nem deve ser o comportamento de uma turma.

Por isso, não me é difícil antecipar o que será um parlamento com 48 seguidores de quem acha que tudo é um tweet, um TikTok ou que a razão está na boçalidade de quem grita mais alto. Será um esforço para todos os deputados de todos os outros partidos conterem o que pode ser uma deriva triste da dignidade do debate parlamentar e do trabalho das comissões.

Nos últimos dias, lemos e ouvimos comentadores de direita e militantes dos partidos da AD a sugerir, mais ou menos explicitamente, que compete ao PS garantir uma estabilidade que se traduzirá em viabilizar as propostas de orçamento do estado que o PSD vier a apresentar, para que Luís Montenegro possa manter o seu “não é não” e para que o Chega se mantenha arredado da governação ou das soluções dessa suposta estabilidade.

Considero que nenhum ónus está no PS, que tem um programa e uma visão para o país saudavelmente distinta da do PSD e, felizmente, diametralmente oposta à do Chega. Pedir ao PS para se tornar o partido de apoio ao governo que se vier a formar, liderado por Luís Montenegro, é estender (mais) uma armadilha ao regime democrático que conhecemos.

A consequência seria entregar o papel de principal partido da oposição ao Chega, anulando a oposição responsável e assente numa visão séria e alternativa para o país que o PS tem. Seria “macronizar” o sistema político português, condenando as escolhas a um único partido democrático contra um partido anti-sistema. Seria secar o pluralismo no espectro democrático, que ainda é de 80%, no debate político e parlamentar. O ónus não está no PS, que deve fazer uma oposição construtiva e séria, mas sim em quem se propõe governar.

O PS formou governo em 2019 sem acordos parlamentares formalizados e governou, negociando, durante a pandemia. Ninguém no PS pediu ao PSD que se anulasse como oposição e fosse bengala do PS quando se antevia que o orçamento do estado ia ser chumbado com o voto do PCP e do BE. Não seria saudável nem desejável.

Espero, aliás, para bem do país, que o PS seja a oposição que o PSD raramente foi. Que leve para o debate parlamentar os problemas dos portugueses e não apenas o que saiu nos jornais nos últimos dias. Ao longo dos últimos anos disse muitas vezes a amigos do PSD que lamentava que não tivéssemos tido uma oposição mais desafiante, com propostas.

A AD vai governar com um país financeiramente mais robusto. Vamos ver se tem uma estratégia de governação de médio e longo prazo, com responsabilidade, ou se estará em pré-campanha desde o primeiro dia. À AD compete governar, ao PS e aos restantes partidos ser oposição. O Chega será aquilo que a AD e o PS quiserem.

Se o PS prescindisse de ser alternativa, ofereceria esse lugar ao populismo. O ónus está mesmo no PSD. Isto não é um jogo de empurra. Há quem fale da importância da estabilidade, mas há uma estabilidade muito mais importante em causa neste momento e que vai para além dos calendários imediatos.

Quando um partido com mensagens xenófobas, misóginas, homofóbicas, que vive de chavões e da disseminação de mentiras e factos alternativos ganha expressão, é a estabilidade da democracia, dos direitos humanos, dos valores humanistas que está em causa. Atribuir-lhe o papel de única alternativa, de oposição principal, é abdicar de dizer que a outra escolha não é essa. O ónus está aí.

A estabilidade que eu quero é a do regime democrático, para que não tenha de tremer quando ouço um Presidente, que contribuiu para o que estamos a viver de formas que intuo que só perceberemos mais tarde, dizer que se aproxima um novo ciclo depois dos primeiros 50 anos do 25 de abril.

Esse novo ciclo só virá se desistirmos de mostrar que a alternativa saudável e democrática existirá, no debate saudável entre os partidos (todos, novos e velhos) que sabem que é pela liberdade e pela democracia que avançamos, sem saudosismos de um antigamente que era tudo menos bom.

QOSHE - A maior estabilidade é a preservação da democracia - João Costa
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

A maior estabilidade é a preservação da democracia

6 0
13.03.2024

Tive a desventura de passar os últimos anos sentado num dos lugares mais próximos da bancada do Chega, quando o Governo ia à Assembleia da República. Não desejo a ninguém a proximidade que tive, que me deu a oportunidade de testemunhar a forma como tudo e todos eram desrespeitados a cada momento.

O problema não estava, na maior parte das vezes, nas intervenções de microfone aberto, que já de si se pautavam por aquilo que todos podíamos ouvir. A natureza sórdida dos apartes, dos comentários entre os deputados, dos dichotes, sem educação básica, com formas indignas de tratar os deputados (e em particular algumas deputadas), fez com que pudesse assistir a uma degradação da dignidade de atitudes na Assembleia que julgava impossível, a partir do momento em que aquele grupo parlamentar se formou.

Terei oportunidade de descrever esta mudança com mais pormenor. Senti muitas vezes vergonha alheia pelo que os alunos que se sentavam nas galerias viam. Tive oportunidade de apontar como quem tanto clamava pela disciplina nas escolas dava o maior exemplo do que não pode nem deve ser o comportamento de uma turma.

Por isso, não me é difícil antecipar o que será um parlamento com 48 seguidores de quem acha que tudo é um tweet, um TikTok ou que a razão........

© Expresso


Get it on Google Play