6.044, 10.773 e 78%. À primeira vista, trata-se apenas de cifras. Infelizmente, é muito mais do que isso. São, por ordem, o número de pessoas sem abrigo em 2018, em 2022 e a percentagem de aumento nesses quatro anos.

Em qualquer altura, este cenário perturba. Mas ela torna-se ainda mais angustiante num período como aquele que atravessamos. Porque ninguém pode ficar indiferente às imagens, que as televisões multiplicaram, das equipas de voluntários que organizaram jantares de consoada ou que percorreram as ruas, tentando transmitir algum conforto e sentido de humanidade ao Natal daqueles que a sociedade parece ter esquecido. Daqueles que (sobre)vivem em condições de indignidade. Daqueles cujo olhar e cujas palavras são bem reveladores da perda de esperança no futuro.

Em 2017, a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo assumia como objectivo estratégico a erradicação desse flagelo até 2023. Para não variar, o Governo socialista foi incapaz de cumprir.

Mas não impressiona, apenas, o número. É que se diversificou, igualmente, a origem daqueles que são afectados. Tradicionalmente, muitas destas situações ficavam a dever-se às consequências de doenças, de comportamentos aditivos ou de desemprego. Agora, encontramos, em número crescente, casos relacionados com o aumento do custo de vida, com a falta de condições para pagar uma renda ou com a exploração de imigrantes.

Como ouvi alguém dizer, ter trabalho deixou de ser sinónimo de poder ter casa. E isso significa uma coisa: que as políticas públicas estão a falhar de forma clamorosa.

O agravamento que se registou nesta área (e em muitas outras, de resto) vai de par, porém, com um discurso político autocongratulatório daqueles que nos governam, que ficou bem patente na mensagem de Natal de António Costa.

Das palavras que, nessa ocasião, proferiu, impressionou-me pela negativa, em particular, a passagem em que defendeu que Portugal está preparado para vencer os grandes desafios que enfrenta.

A afirmação, como todos sabemos, não é verdadeira. Mas como se pode, sequer, falar em vencer os grandes desafios, quando nem aqueles que são pequenos pelo número de pessoas que afectam (ainda que não pela intensidade da dor que provocam) se conseguem atalhar?

Por estes dias, foram conhecidas, também, as estatísticas sobre as provas de aferição realizadas em Maio e Junho passado.

Até agora, o Governo não se dignou vir a público dar conhecimento dos resultados. Mas o Diário de Notícias teve acesso a eles. E qualificá-los como péssimos não me parece, em nada, excessivo. Senão vejamos.

Comecemos pelo 2.º ano. Em língua portuguesa, o melhor domínio (ou, melhor dizendo, o menos mau) foi o da oralidade, com 48,1% dos alunos a conseguir concretizar as tarefas propostas. No que toca à gramática, 36,6% não conseguiu realizá-las. E, na disciplina de matemática, em nenhum dos domínios avaliados os índices são positivos.

No que toca ao 5.º ano, em língua portuguesa só 14,2%, 5,2%, 8,7% e 17,4% dos alunos não revelaram dificuldades, respectivamente, em oralidade, leitura, gramática e escrita. Já em história geral de Portugal os resultados são piores ainda.

Por fim, no que respeita ao 8.º ano, em ciências da natureza e em físico-química os alunos com dificuldades são mais de 50% em quase todos os domínios alvo de avaliação. E, em matemática, o panorama é semelhante.

Não pode olvidar-se, é certo, que o facto de as provas de aferição não contarem para a avaliação leva alguns alunos (e encarregados de educação) a desvalorizarem a sua importância. Mas isso não é suficiente, creio, para alterar a leitura negativa do panorama geral que retratam.

Quando chegou ao poder, a geringonça não descansou enquanto não aboliu, em 2016, os exames do 4.º e do 6.º ano da escolaridade (e, algum tempo depois, o Bloco de Esquerda chegou, até, a propor a eliminação dos do 9.º ano!).

A lógica do PS, nesta como noutras áreas, é sempre a mesma: o facilitismo. Ignorando o facto, evidente, de que a exigência de hoje é a melhor maneira de preparar os alunos para os desafios que a realidade lhes colocará quando entrarem no mercado de trabalho.

Acresce que a tão propalada paixão pela educação é desmentida, uma vez mais, pelos factos concretos. Portugal despende 5,1% do PIB em educação. Entre 1996 e 2011, oscilou entre um mínimo de 5,8% e um máximo de 6,7%. Mesmo nos anos da troika o valor foi sempre superior, com excepção de 2015, em que foi idêntico.

Não surpreende, pois, que os pais, bem conscientes da realidade com que diariamente se defrontam, olhem com acrescida desconfiança para a escola pública (a tal que os socialistas tanto proclamam defender). E que, quando isso lhes é possível, optem por colocar os seus filhos em escolas privadas.

Resultado: em 2022, 20,7% dos alunos estavam matriculados, em todos os graus de ensino, em instituições privadas. É preciso recuar 11 anos, até 2011, para encontrar dados similares.

Há três semanas atrás, recordei nesta coluna que cerca de 3,5 milhões de pessoas buscaram nos seguros de saúde a resposta que o Serviço Nacional de Saúde não é capaz de lhes assegurar.

Se a isso somarmos a realidade em matéria de educação, como não dizer que a governação socialista é a melhor aliada dos interesses privados nesses sectores?

Como não dizer que é a ela que se deve o agravamento da disparidade entre aqueles cujos rendimentos lhes permitem pagar pela saúde e pela educação e aqueles que estão condenados, por falta de posses, a socorrer-se de serviços que não dão a resposta a que têm direito?

Na sua mensagem, António Costa usou, julgo que onze vezes, a palavra confiança. É caso para perguntar: confiança em quê? Não, seguramente, no legado de realidade que os últimos oito anos nos deixa.

QOSHE - Autocongratulação e realidade - José Matos Correia
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Autocongratulação e realidade

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27.12.2023

6.044, 10.773 e 78%. À primeira vista, trata-se apenas de cifras. Infelizmente, é muito mais do que isso. São, por ordem, o número de pessoas sem abrigo em 2018, em 2022 e a percentagem de aumento nesses quatro anos.

Em qualquer altura, este cenário perturba. Mas ela torna-se ainda mais angustiante num período como aquele que atravessamos. Porque ninguém pode ficar indiferente às imagens, que as televisões multiplicaram, das equipas de voluntários que organizaram jantares de consoada ou que percorreram as ruas, tentando transmitir algum conforto e sentido de humanidade ao Natal daqueles que a sociedade parece ter esquecido. Daqueles que (sobre)vivem em condições de indignidade. Daqueles cujo olhar e cujas palavras são bem reveladores da perda de esperança no futuro.

Em 2017, a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo assumia como objectivo estratégico a erradicação desse flagelo até 2023. Para não variar, o Governo socialista foi incapaz de cumprir.

Mas não impressiona, apenas, o número. É que se diversificou, igualmente, a origem daqueles que são afectados. Tradicionalmente, muitas destas situações ficavam a dever-se às consequências de doenças, de comportamentos aditivos ou de desemprego. Agora, encontramos, em número crescente, casos relacionados com o aumento do custo de vida, com a falta de condições para pagar uma renda ou com a exploração de imigrantes.

Como ouvi alguém dizer, ter........

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