Em diálogo que teve lugar no final do ano passado, um amigo que muito estimo dizia-me que os diferentes actores políticos portugueses estavam a cometer um erro de palmatória no que respeita ao modo de lidar com o Chega. Não faz qualquer sentido, asseverava-me, traçar uma espécie de cordão sanitário em torno dele. Diferentemente, a única forma de o neutralizar é tentar enquadrá-lo no sistema, moderá-lo e, dessa forma, torná-lo menos apelativo aos olhos dos potenciais eleitores. E, segundo o meu interlocutor, aquilo que sucede em vários países, onde partidos com natureza similar têm vindo a aumentar o seu peso, é bem a prova do erro dessa estratégia.

Debalde tentei contra-argumentar da melhor forma que soube e pude. Ficámos, assim, como estávamos no início da conversa: cada um na sua.

O modo como decorreu, no passado fim de semana, a convenção nacional do partido, reconfortou-me, porém. Afinal, a razão estava (e está) do meu lado.

Já sabíamos como, no plano dos princípios, o Chega se encontra nos antípodas dos princípios e dos valores que devem nortear uma sociedade mais justa, mais solidária, mais culta. Enfim, mais civilizada.

Já sabíamos como, no plano da prática política, o Chega não olha a meios para atingir os seus fins, recorrendo, de forma sistemática e consciente, à mentira e à manipulação.

Já sabíamos como, no plano das atitudes, o Chega é uma espécie de catavento, dizendo hoje o que amanhã desdiz sem qualquer pudor, num comportamento típico de quem não tem causas, mas conveniências.

Apesar de, aqui ou ali, por tacticismo, os intervenientes mais relevantes terem optado por esquivar referências a alguns temas mais controversos que veem marcando o seu discurso, a convenção do Chega confirmou, se necessário fosse, tudo aquilo que sabíamos.

Mas, a meu ver, o ponto principal não é esse. Com efeito, a dois meses das eleições legislativas, o Chega decidiu, finalmente, avançar com propostas (ainda que limitadas) em áreas centrais da governação. Ou melhor, com slogans, uma vez que se trata de afirmações sem qualquer adesão à realidade e que foram feitas, apenas, com o intuito de enganar os incautos.

O IUC é para acabar. O IMI para ser eliminado. E as pensões mínimas vão subir até ao nível do salário mínimo nacional.

Anúncios que, agregadamente, teriam consequências devastadoras no que respeita à diminuição da receita e ao aumento da despesa pública. E que, a serem concretizados, muito dificilmente poderiam um dia ser invertidos.

Em contrapartida, vacuidade no que respeita ao modo de financiar tanto irrealismo, que pode custar cerca de 11.000 milhões de euros: contribuição extraordinária sobre a banca (que, por acaso, já existe) e corte total de verbas para a igualdade de género. Uma gota de água, portanto, face à enormidade daquilo que tem de ser compensado ou financiado.

Mas talvez eu esteja a ser injusto. É que André Ventura, o grande prestidigitador, tem, afinal, um truque na manga: o “buraco” orçamental vai ser tapado com as verbas provenientes do combate à corrupção que, segundo ele, custa anualmente ao País 20.000 milhões de euros.

Ínfimo detalhe: como? Com que medidas? Com que meios? Com que procedimentos? Com que regras?

Sobre isso, nada. Absolutamente nada. Num comportamento típico daqueles que vivem da forma e desconsideram, em absoluto, o conteúdo. Naquela lógica de que o que importa é agitar, porque o movimento é tudo e o fim nada. Numa atitude plena de jactância de quem não atenta a minudências face à grandiosidade dos propósitos.

Em todo o caso, não deixa de ser sintomático que o Chega, que tanto critica a esquerda radical, tenha uma atitude que, em tudo, lhe é comparável: primeiro, promete-se mundos e fundos; depois, logo se vê onde se vai buscar o dinheiro para pagar os desmandos. E, se tal não for conseguido, arranja-se um bode expiatório (ou vários) para justificar o insucesso.

Não há, pois, como dialogar e, muito menos, como pactuar o que quer que seja com o Chega. Não só porque não tem princípios, mas também porque agora ficou bem patente a ausência da mais pequena das ínfimas noções daquilo que governar implica.

Hugo Soares, na reacção ao discurso de encerramento de André Ventura, utilizou uma (muito) feliz expressão, qualificando a convenção do Chega como um “entreposto de banha da cobra”.

Não poderia estar mais de acordo. Mas há uma coisa que me preocupa. Os vendedores da “original” banha da cobra (uma pomada inútil, preparada a partir de uma mistela chamada teriaga) levaram muitos séculos a ser desmascarados.

Hoje, não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar tanto tempo. Temos de ser muito rápidos a desacreditar os vendedores de banha da cobra na política. Porque, se o não fizermos, as consequências podem ser devastadoras. Convinha, assim, que todos os democratas compreendessem a importância dessa tarefa e se concentrassem nela.

QOSHE - Banha da cobra política - José Matos Correia
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Banha da cobra política

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17.01.2024

Em diálogo que teve lugar no final do ano passado, um amigo que muito estimo dizia-me que os diferentes actores políticos portugueses estavam a cometer um erro de palmatória no que respeita ao modo de lidar com o Chega. Não faz qualquer sentido, asseverava-me, traçar uma espécie de cordão sanitário em torno dele. Diferentemente, a única forma de o neutralizar é tentar enquadrá-lo no sistema, moderá-lo e, dessa forma, torná-lo menos apelativo aos olhos dos potenciais eleitores. E, segundo o meu interlocutor, aquilo que sucede em vários países, onde partidos com natureza similar têm vindo a aumentar o seu peso, é bem a prova do erro dessa estratégia.

Debalde tentei contra-argumentar da melhor forma que soube e pude. Ficámos, assim, como estávamos no início da conversa: cada um na sua.

O modo como decorreu, no passado fim de semana, a convenção nacional do partido, reconfortou-me, porém. Afinal, a razão estava (e está) do meu lado.

Já sabíamos como, no plano dos princípios, o Chega se encontra nos antípodas dos princípios e dos valores que devem nortear uma sociedade mais justa, mais solidária, mais culta. Enfim, mais civilizada.

Já sabíamos como, no plano da prática política, o Chega não olha a........

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