Por vezes é útil cavar na nossa memória e partilhar o que descobrimos.

A História não se repete e quando ocorreu uma tragédia nem sequer volta sempre como comédia, como afirmou Karl Marx.

Mas, usando de todas as cautelas, vale pena voltar ao passado para nos ajudar a compreender melhor o presente.

O título “in illo tempore” era usado para referir o período em que Jesus esteve neste Mundo. Não vou tão longe, podem estar tranquilos.

Vejamos apenas algumas situações que a minha idade me permite lembrar, pois os presenciei.

Em 1985 a campanha eleitoral para as presidenciais do ano seguinte levava a prever que haveria uma 2ª volta que seria disputada entre Salgado Zenha (histórico socialista e antigo nº 2 de Mário Soares no PS, com quem se incompatibilizara) e Freitas do Amaral.

Soares fora muito afetado pelo fracasso do governo de Bloco Central que Cavaco Silva rompera.

Cavaco tinha conseguido ganhar as eleições legislativas de outubro de 1985 com cerca de 29%, e o recém-criado partido eanista (PRD) obtivera 18%.

Salgado Zenha era apoiado pelos eanistas e pelo PCP, ao passo que os maoístas da UDP apoiaram Maria de Lurdes Pintasilgo, uma líder católica de esquerda que tinha presidido ao último dos três governos presidenciais que antecederam a vitória da AD em 1979.

Soares estava creditado nas sondagens com pouco mais de 10% e depois do fracasso do PS nas legislativas, Zenha e o PRD poderiam dar cabo da viabilidade do PS (aliás amplamente dividido pois muitos dos seus quadros preferiam Zenha) numa estratégia de tenaz que é clássica.

Eu era apoiante de Freitas do Amaral e com alguns outros defendi publicamente que como cidadão preferia que Freitas perdesse para Soares na 2ª volta do que que ganhasse – como seria mais fácil – nela a Zenha.

Podem imaginar as críticas de que fomos alvo, a pior das quais não era o epíteto de “traidores” ou “5ª coluna do Soarismo”.

A razão da minha posição era, no entanto, óbvia: a polarização entre a Direita Democrática e uma aliança entre o PCP de adeptos de um partido presidencialista eanista, seria péssima para o sistema político em que era preciso – como se conseguiu – que fossem os partidos moderados a liderar.

A destruição do PS (na altura um partido moderado) seria a curto prazo uma alegria para a Direita moderada (não havia aliás radicais nesse lado do espectro político, embora chamar fascista a Freitas, como antes a Sá Carneiro, fosse o desporto favorito da Esquerda), mas iria destruir os cimentos do sistema político liberal-social em que finalmente se vivia.

Passaram quase 40 anos. Agora o PS de PNS quer polarizar o país entre a Esquerda unida e o Chega, como muitos do PSD queriam ardentemente que Zenha ou mesmo Pintasilgo passasse à 2ª volta. Para estes fundamentalistas, o PSD está tão radicalizado que se tornou num partido infrequentável.

Espero que haja quem no PS tenha coragem de discordar clara e publicamente desta perigosa estratégica. E que a oportunista

estratégia de PNS seja rapidamente abandonada, pois fará que em 2026 a 2ª volta não seja entre moderados.

Em 1987 Cavaco Silva ganhou a sua primeira maioria absoluta, com 50,2%, reduzindo o CDS e o PRD a pouco mais de 4% cada e o PS a 22%.

Como é natural, o resultado subiu à cabeça dos vencedores que passaram a considerar que se tinham tornado o “partido natural de Governo”, hegemónico e rodeado de anões.

Para fortalecer essa estratégia acabou o diálogo com o PS e os outros partidos moderados e a lógica da tenaz sobre o PS voltou a ser usada, com a subtileza da prioridade ao diálogo com as centrais sindicais e indiretamente com o PCP.

Na altura, eu era membro do Conselho Nacional do PSD e na primeira reunião após a vitória eleitoral afirmei que teria preferido que o PSD não tivesse ocupado todo o espaço da Direita, e que para o futuro do sistema político era até essencial que o PSD não se descaraterizasse com o sucesso, mas na minha opinião isso era quase inevitável com a lógica da maioria absoluta.

Nada disto aumentou a minha popularidade, como não aumentaria no PS a de quem tivesse optado por falar em idêntico sentido contra os malefícios da maioria absoluta.

A demissão de Costa tornou menos prováveis miasmas semelhantes ao do “Cavaquismo”, mas a lógica socialista para tentar renovar a muito improvável maioria absoluta vai ser tentada com uma estratégia aterrorizadora e favorável ao CHEGA. A História repete-se…

Em 1979, estava fresca a época revolucionária, Sá Carneiro concluiu que seria muito difícil – mesmo improvável – derrotar o PS sem uma coligação pré-eleitoral com o CDS e outros.

Apesar das credenciais impecáveis de respeito da Liberdade e da Democracia, até no PSD havia uns tontos que achavam que o CDS era cripto-fascista.

Por essas e por outras, quando foi levada ao Conselho Nacional do PSD essa proposta do que veio a ser a AD, Sá Carneiro ficou derrotado. Mas não desistiu, insistiu e na vitória que finalmente acabou por obter deu uma mensagem aos eleitores à Direita e ao Centro de determinação e vitória.

Nesse sentido jogara também o risco de manter a sua estratégia contra a metade do Grupo Parlamentar que não a conseguindo alterar se demitiram do PSD.

O resultado foi inequívoco: com 45,6% tiveram maioria absoluta (128 contra 122 deputados da Esquerda) e o PS, apenas com 27,3% perdeu 30% dos deputados da legislatura anterior. Sem a coligação pré-eleitoral a esquerda seria maioritária.

Na política há riscos que compensam. Quem tem medo de correr riscos, passa a mensagem errada aos eleitores.

Finalmente parece que Montenegro optou por não ir a eleições sozinho, mas também Rio queria ir com o CDS e o partido recusou.

Nas eleições legislativas de 1985 o PS sabia que não podia coligar-se no Governo com o PCP, como agora o PSD não pode com o Chega.

Por isso montou uma estratégia arriscada: pediu aos eleitores que lhe dessem 44% dos votos para obter a maioria absoluta. Os portugueses deram-lhe apenas 20%, o que demonstra que uma coisa é correr riscos outra optar por ideias totalmente inviáveis e insensatas.

Agora PNS tem um problema que é um dilema: sabe que precisa da gerigonça para ser Primeiro-Ministro, mas não quer prometer essa solução pois precisaria de negociar com o BE e o PCP nos próximos meses e estes partidos estão escaldados.

Poderia optar por dizer que fará um governo minoritário e que os partidos radicais de Esquerda, como o Chega no sentido oposto, não poderão derrubá-lo.

O PS devia estudar as eleições de 1985.

Há uma tese que está a ser lançada pelos spin doctors do PS: PNS não é radical, aliás os radicais quando se aproximam do Poder tornam-se centristas, e Assis, Beleza e alguns outros são a caução contra radicalismos.

Não digo que isso não seja viável, mas parece que PNS ainda não está maduro para a evolução: o exemplo mais claro é criar uma linha vermelha entre o PS e o PSD considerando que este partido é hoje muito radical e infrequentável.

Outro é desejar a aliança com o BE e o PCP não como aconteceu com Costa (um movimento tático e oportunista), mas com base numa profunda convicção.

Muito gostaria eu que os partidos radicais de Esquerda evoluíssem para dentro do sistema político: a “geringonça” foi nesse sentido uma oportunidade perdida de onde saíram ainda mais radicais. E com Mariana Mortágua, muito mais radical do que a sua antecessora, e com Raimundo, muito mais fraco do que Jerónimo de Sousa, não se podem ter ilusões.

E que eu tenho razão revela-se evidentemente pelos apoios de JLC: o PS com experiência está assustado e só espera que PNS falhe…

Ou seja, PNS pode sair do radicalismo, mas o radicalismo não saíu dele.

É para Luis Montenegro.

O “Nascer do Sol” revelou que Montenegro quer tudo fazer para se apresentar às eleições a encabeçar uma aliança estratégica que vá do CDS a personalidades de centro-esquerda algumas delas que andam ou terão andado próximas do PS.

A previsível vitória de PNS no PS é uma ajuda preciosa a esta estratégia. Mas ela tem mérito em si mesmo. In illo tempore, a AD de Sá Carneiro deveu parte do seu sucesso ao notável grupo de “Reformadores” onde, entre outros, avultavam António Barreto, Medeiros Ferreira, Artur Santos Silva, Francisco Sousa Tavares.

E em qualquer caso teve um excelente Congresso, dois excelentes discursos e a clara unção de Cavaco, o que não é pouco.

O 25 de Novembro de 1975 foi a última e decisiva confrontação com a extrema-esquerda político-militar e encerrou a fase de convulsões que podia levar a uma guerra civil.

A história dos moderados que ganharam não tem sido contada. Hoje sugiro dois livros com interesse histórico que acabam de sair e não têm sido referidos.

“Abril em Novembro – as verdadeiras razões do 25A, 11M e 25N contados por quem os viveu” (Lisbon Press), de Rui Salvada (militar comando e depois deputado do PSD) é um relato documental dessa época onde são ouvidos muitos participantes e reveladas informações esquecidas.

“O Grupo dos 80. A resistência na Armada ao desvio totalitário pós 25 de Abril” (edição dos autores e obra coletiva), revela também factos poucos divulgados da resistência ao Gonçalvismo na Armada e a sua importância na desmontagem do golpe de 25 de novembro.

Sempre que se viola o segredo da investigação e de justiça, na fase que antecede a audição de arguidos para medidas de coação, como é evidente a violação só pode vir dos responsáveis pelo inquérito.

Depois disso os culpados podem ser vários e por isso os media, com profissionalismo e não podendo denunciar a fonte, quando a origem vem da investigação, é habitual falarem em “fonte judicial”.

Ora, o MP e/ou a PJ não integram o “judicial”, apenas formado por Juízes ou, como também se diz, “magistrados judiciais”.

Acredito que este erro aliás básico não seja intencional, mas objetivamente protege quem viola a lei e lança o opróbrio para quem o não merece, os juízes.

A pergunta dirige-se aos jornalistas: será que podem passar a ter um pouco mais de cuidado?

O tema do 25 de novembro de 1975 é considerado tóxico, como é natural, pelos que estavam envolvidos ou apoiavam as forças político-militares de extrema-esquerda que foram derrotadas e, com honrosas exceções como o Major Tomé, tudo fazem para que isso seja esquecido.

Também se compreende que o PCP, que recuou pouco antes do golpe, tenha comportamento idêntico.

O que é estranho, e um relevante sinal dos novos tempos na Esquerda moderada portuguesa, é que o PS adira à teoria dos derrotados de que comemorar o 25 de novembro é “uma tentativa de menorizar a dimensão e significado da Revolução de Abril”.

Com isso é uma parte essencial da história do PS que se deita pela janela e apenas por considerações tacticistas e conjunturais.

QOSHE - As Causas. In illo tempore - José Miguel Júdice
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As Causas. In illo tempore

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29.11.2023

Por vezes é útil cavar na nossa memória e partilhar o que descobrimos.

A História não se repete e quando ocorreu uma tragédia nem sequer volta sempre como comédia, como afirmou Karl Marx.

Mas, usando de todas as cautelas, vale pena voltar ao passado para nos ajudar a compreender melhor o presente.

O título “in illo tempore” era usado para referir o período em que Jesus esteve neste Mundo. Não vou tão longe, podem estar tranquilos.

Vejamos apenas algumas situações que a minha idade me permite lembrar, pois os presenciei.

Em 1985 a campanha eleitoral para as presidenciais do ano seguinte levava a prever que haveria uma 2ª volta que seria disputada entre Salgado Zenha (histórico socialista e antigo nº 2 de Mário Soares no PS, com quem se incompatibilizara) e Freitas do Amaral.

Soares fora muito afetado pelo fracasso do governo de Bloco Central que Cavaco Silva rompera.

Cavaco tinha conseguido ganhar as eleições legislativas de outubro de 1985 com cerca de 29%, e o recém-criado partido eanista (PRD) obtivera 18%.

Salgado Zenha era apoiado pelos eanistas e pelo PCP, ao passo que os maoístas da UDP apoiaram Maria de Lurdes Pintasilgo, uma líder católica de esquerda que tinha presidido ao último dos três governos presidenciais que antecederam a vitória da AD em 1979.

Soares estava creditado nas sondagens com pouco mais de 10% e depois do fracasso do PS nas legislativas, Zenha e o PRD poderiam dar cabo da viabilidade do PS (aliás amplamente dividido pois muitos dos seus quadros preferiam Zenha) numa estratégia de tenaz que é clássica.

Eu era apoiante de Freitas do Amaral e com alguns outros defendi publicamente que como cidadão preferia que Freitas perdesse para Soares na 2ª volta do que que ganhasse – como seria mais fácil – nela a Zenha.

Podem imaginar as críticas de que fomos alvo, a pior das quais não era o epíteto de “traidores” ou “5ª coluna do Soarismo”.

A razão da minha posição era, no entanto, óbvia: a polarização entre a Direita Democrática e uma aliança entre o PCP de adeptos de um partido presidencialista eanista, seria péssima para o sistema político em que era preciso – como se conseguiu – que fossem os partidos moderados a liderar.

A destruição do PS (na altura um partido moderado) seria a curto prazo uma alegria para a Direita moderada (não havia aliás radicais nesse lado do espectro político, embora chamar fascista a Freitas, como antes a Sá Carneiro, fosse o desporto favorito da Esquerda), mas iria destruir os cimentos do sistema político liberal-social em que finalmente se vivia.

Passaram quase 40 anos. Agora o PS de PNS quer polarizar o país entre a Esquerda unida e o Chega, como muitos do PSD queriam........

© Expresso


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