Tudo na polémica que a direita quis lançar sobre as ações dos CTT é artificial e absurdo. Agitou uma negociação entre o PS e os partidos da esquerda que nunca existiu. Sugeriu que a compra de 0,24% dos CTT poderia ser elemento de negociação de um voto no Orçamento, o que é ridículo. Efabulou, tentando omitir que o dito Orçamento foi chumbado pelo Bloco. Utilizou linguagem delituosa para classificar supostas negociações partidárias, como se uma decisão política fosse um “conluio”. Procurou criar um anátema sobre qualquer intervenção pública numa empresa privatizada.

Inventou-se uma narrativa disparatada no afã de ocupar espaço comunicacional e de, no meio do ruído, disseminar subliminarmente a ideia da ilegitimidade de decisões democráticas sobre ativos estratégicos. O tiro virou-se, todavia, contra os seus autores. É que falar dos CTT não traz conforto à direita. A privatização, inscrita no memorando com a troika e concretizada pelo governo PSD-CDS em 2013 e 2014, foi uma desgraça sob todos os pontos de vista, exceto o dos acionistas que meteram dinheiro ao bolso.

O Estado recebeu pouco mais de 900 milhões de euros por uma empresa que dava lucro (577 milhões entre 2005 e 2014) e que possuía um bem muito apetecível: uma licença bancária. O argumento de que os privados iriam gerir melhor o serviço postal revelou-se uma fraude. A gestão privada significou encerramento de balcões, despedimento de trabalhadores, diminuição dos lucros (61 milhões em 2013; 29,2 milhões em 2019), agravamento da desigualdade territorial, aumento dos preços e queda abrupta na qualidade do serviço, em todos os indicadores definidos pela entidade reguladora (prazos de entrega, cobertura territorial, regularidade, fiabilidade do serviço…).

À medida que se degradava o serviço, a empresa era saqueada, por via da venda de património e da descapitalização. Entre 2012 e 2019, sob a direção de Francisco Lacerda, a administração distribuiu em dividendos aos acionistas um valor superior aos lucros gerados, ao mesmo tempo que se remunerava principescamente. Em 2017, Lacerda tinha um vencimento de 66 mil euros por mês, quase um milhão por ano. Deu ordem para fechar mais de 20 balcões, anunciou o despedimento de 800 pessoas e pagou dividendos de 74 milhões, quando os correios só tinham lucrado 62 milhões. O que chamar a isto senão um assalto?

Ventura, que tentou transformar a compra dos irrisórios 0,24% dos CTT num grande “escândalo nacional”, não diz nada sobre este escândalo verdadeiro que tem sido a gestão privada. Fez aliás o seu elogio. Não admira. O Chega beneficiou diretamente do dinheiro de alguns dos acionistas que compraram os Correios e se encheram de dividendos. Até há pouco tempo, o maior acionista dos CTT era a holding de Manuel Champalimaud, que detém ainda mais de 13% da empresa. Ora, como revelou uma investigação da revista Sábado, o mesmo Manuel Champalimaud, frequentador de jantares do Chega, foi um dos doadores do partido. Também Miguel Champalimaud (dono da Quinta da Marinha), a sua esposa, Mafalda Champalimaud, filhos, sobrinhos e outros familiares. No total, encheram os cofres da extrema-direita com mais de 22 mil euros só em 2021.

Surpreende, ainda, a posição de Pedro Nuno Santos a propósito deste desastroso negócio da direita. Nos últimos dias, o líder do PS quis desdobrar-se em garantias de que “não vamos ter qualquer reversão de privatização no nosso programa eleitoral", que “estar sempre a reverter tudo é mau” e que não pretende “andar a corrigir tudo o que os outros fizeram”. Ora, dez anos de privatização permitem fazer um balanço: o Estado alienou uma empresa lucrativa, que passou a prestar um serviço pior, mais caro, pondo em causa o interesse público e estratégico do país. Recuperar o controlo público dos CTT é pois do mais elementar bom senso. Não há razões de sobra para incluir a medida num programa de esquerda?

QOSHE - Correios, privados e “bandalheira” - José Soeiro
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Correios, privados e “bandalheira”

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11.01.2024

Tudo na polémica que a direita quis lançar sobre as ações dos CTT é artificial e absurdo. Agitou uma negociação entre o PS e os partidos da esquerda que nunca existiu. Sugeriu que a compra de 0,24% dos CTT poderia ser elemento de negociação de um voto no Orçamento, o que é ridículo. Efabulou, tentando omitir que o dito Orçamento foi chumbado pelo Bloco. Utilizou linguagem delituosa para classificar supostas negociações partidárias, como se uma decisão política fosse um “conluio”. Procurou criar um anátema sobre qualquer intervenção pública numa empresa privatizada.

Inventou-se uma narrativa disparatada no afã de ocupar espaço comunicacional e de, no meio do ruído, disseminar subliminarmente a ideia da ilegitimidade de decisões democráticas sobre ativos estratégicos. O tiro virou-se, todavia, contra os seus autores. É que falar dos CTT não traz conforto à direita. A privatização, inscrita no memorando com a troika e concretizada pelo governo PSD-CDS........

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