Várias lições podem ser retiradas do atribulado início da legislatura. Confirma-se que, à direita, reina a barafunda e a instabilidade. A combinação de arrogância e negligência que Montenegro adotou revelou-se um desastre: não passou no primeiro teste nem resultará como estratégia de um governo gerido apenas para sobreviver ao dia a dia. O Chega, sem qualquer escrúpulo a dar o dito por não dito, aposta no bloqueio institucional para dobrar Montenegro num acordo à luz dos holofotes. O PS continua atravessado por duas orientações diferentes, entre quem quer assumir a oposição e rejeitar amarras ao governo da AD (amarras que favorecem Ventura) e quem, em nome de um “diálogo” no bloco central, considera que deve ceder à chantagem do PSD – hoje para definir o presidente da Assembleia da República, amanhã para viabilizar orçamentos. Da refrega sai um presidente do Parlamento enfraquecido e a prazo, novos patamares de farsa na extrema-direita, e mais probabilidade de eleições repetidas em breve.

E no entanto, não faltam temas e decisões importantes para o Parlamento tomar. No imediato, há que cobrar promessas eleitorais, nomeadamente na recuperação do tempo de serviço dos professores, no suplemento para as forças de segurança, no pagamento aos oficiais de justiça ou na valorização da carreira dos profissionais de saúde. O que foi dito em campanha por PSD e PS tem de ser submetido ao teste da votação parlamentar. Se era para valer, então todas essas medidas serão aprovadas, ainda mais considerando o excedente orçamental que a maioria absoluta do PS quis amealhar enquanto deixava sem resposta os serviços públicos e os seus profissionais. O mesmo se aplica, por exemplo, ao Complemento Solidário para Idosos: durante a campanha, PS e PSD assumiram a proposta de eliminação do rendimento dos filhos dos critérios de aferição do rendimento dos idosos. Será aprovada?

Além das respostas aos aspetos sociais mais prementes - com a habitação, a saúde e os rendimentos à cabeça -, há ainda o tema da representação parlamentar e da consistência entre os votos expressos e os mandatos atribuídos a cada partido. Dependendo do critério (incluir todos os votos que o método de Hondt não converteu em mandato ou apenas os votos dos partidos que não elegeram em determinados círculos), a estimativa anda entre os 700 mil e os 2,3 milhões de votos que não têm um mandato correspondente no Parlamento.

Nenhum sistema é puramente proporcional. Em Portugal, a existência de círculos distritais ou de região autónoma promove um equilíbrio territorial que estaria comprometido num único círculo nacional. Mas tem contribuído também para distorções que se agravam e que empobrecem a escolha e a proporcionalidade democráticas.

Em primeiro lugar, porque no somatório dos círculos mais pequenos, sobram sempre milhares de votos sem hipótese de conversão em mandatos, mesmo quando no todo do território nacional representam um número expressivo. Os cidadãos dos distritos menores veem assim limitado o poder e o alcance do seu voto.

Em segundo lugar, há uma distorção induzida na própria escolha de voto. Milhares de cidadãos veem-se condicionados e desincentivados de participar eleitoralmente por saberem de antemão da improbabilidade da eleição da sua escolha no seu círculo eleitoral, onde só dois ou três partidos têm percentagem suficiente para eleger. Nesses círculos, também por isso, há uma menor aposta dos partidos.

Em terceiro lugar, a ausência de mecanismos de compensação pelos votos não convertidos em mandatos nos círculos distritais ou de região autónoma favorece os maiores partidos, reduzindo-se o pluralismo e distorcendo-se, por vezes de modo decisivo (por um voto se ganha e se perde, se constitui maioria ou não), a representação da vontade popular.

Por isso mesmo, neste início de legislatura, enfrente-se também esta entorse democrática, aperfeiçoando o sistema eleitoral através da criação de um círculo de compensação, como já existe nos Açores no quadro da Constituição. Essa mudança melhoraria a proporcionalidade na atribuição de mandatos e o respeito pelo poder dos cidadãos.

Não é o único desafio democrático, mas deve ter resposta desde já.

QOSHE - Nova legislatura: lições e tarefas dos primeiros dias - José Soeiro
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Nova legislatura: lições e tarefas dos primeiros dias

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27.03.2024

Várias lições podem ser retiradas do atribulado início da legislatura. Confirma-se que, à direita, reina a barafunda e a instabilidade. A combinação de arrogância e negligência que Montenegro adotou revelou-se um desastre: não passou no primeiro teste nem resultará como estratégia de um governo gerido apenas para sobreviver ao dia a dia. O Chega, sem qualquer escrúpulo a dar o dito por não dito, aposta no bloqueio institucional para dobrar Montenegro num acordo à luz dos holofotes. O PS continua atravessado por duas orientações diferentes, entre quem quer assumir a oposição e rejeitar amarras ao governo da AD (amarras que favorecem Ventura) e quem, em nome de um “diálogo” no bloco central, considera que deve ceder à chantagem do PSD – hoje para definir o presidente da Assembleia da República, amanhã para viabilizar orçamentos. Da refrega sai um presidente do Parlamento enfraquecido e a prazo, novos patamares de farsa na extrema-direita, e mais probabilidade de eleições repetidas em breve.

E no entanto, não faltam temas e decisões........

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