Existem sentimentos de rejeição em relação aos mais pobres, com base nos mais básicos instintos de repulsa e medo perante quem tem de depender dos outros para viver.

Este sentimento de rejeição torna-se visível na formulação de mitos – que mais não são do que preconceitos, sem adesão à realidade – sobre a pobreza. Crê-se, por exemplo, que todos os pobres são culpados pela sua situação ou que todos eles tiram vantagens do assistencialismo, usando de todos os esquemas e artifícios para obter subsídios.

A rejeição aprofunda-se se os mais pobres são estrangeiros, uma vez que este sentimento se mistura com o racismo e a xenofobia. Em casos mais extremos, esta materializa-se na prática de crimes contra os mais pobres: agressões físicas, tratamento vexatório e em certos casos até tentativas de homicídio.

A aversão aos mais pobres está tão interiorizada que faz com que nas grandes cidades se aceite de forma quase inconsciente e acrítica uma gestão do espaço público que lhes é hostil. Esta hostilidade é muito evidente em certos elementos urbanos impeditivos de que pessoas sem-abrigo possam ocupar o espaço público: pedras colocadas sob viadutos, grades em volta de canteiros ou sítios relvados, elementos pontiagudos firmados em vãos de estações de transporte público, goteiras estrategicamente posicionadas e programadas em sítios abertos debaixo de prédios, floreiras em frente a espaços comerciais, bancos de jardim divididos ou cortados a meio, bancos públicos com dimensões ou curvaturas que não permitam a uma pessoa deitar-se. Torna-se também evidente no número crescente de países que criminalizam a mendicância ou a regulam de forma a condicionar, seja os sítios onde os mais pobres podem estar, seja o discurso que os mesmos podem adotar no espaço público (Portugal é dos poucos Estados europeus que não aderiu ainda a esta tendência).

Este sentimento de aversão em relação aos mais pobres foi objeto de tratamento e análise pela filósofa espanhola Adela Cortina. Procurando dar nome a esta rejeição, esta autora deu-lhe o nome de aporofobia.

Trago estas reflexões a propósito do tema da pobreza infantil, um subtema da pobreza, o qual é urgente que seja, de forma consciente, arredado deste sentimento aporofóbico, pelas especificidades que encerra.

A pobreza infantil é fruto de uma situação causada pela circunstância totalmente aleatória de se ter nascido numa família pobre. Ela afeta quem não tem meios para sair, por si só, da situação de pobreza com que se confronta.

Pela sua especificidade, o tema da pobreza infantil deve ser objeto de particular cuidado para que as suas medidas não reflitam os preconceitos e a hostilidade social que marcam as políticas da pobreza. Sem a mobilização da sociedade e sem a intervenção do Estado não é possível encontrar solução para o problema da pobreza infantil, uma vez que ela é fruto de circunstâncias que só com a intervenção externa podem ser alteradas.

Em Portugal, há inúmeros instrumentos públicos que concorrem para a resolução dos problemas da pobreza infantil. Com um papel inquestionavelmente relevante, temos a escolaridade obrigatória que garante a preservação da infância de tarefas consideradas perturbadoras do desenvolvimento harmonioso, enquanto proporciona o acesso a uma formação considerada adequada. Temos ainda o acesso gratuito a cuidados de saúde, com reconhecido impacto na melhoria significativa das condições de vida da infância. Também poderíamos mencionar o importante programa das cantinas escolares, que garante o acesso à alimentação a muitas crianças.

Mas é preciso mais, porque o que existe ainda não é suficiente. No período de 2019-2021, de acordo com a UNICEF, havia ainda uma taxa de 19% de pobreza infantil. Apesar de se ter verificado uma redução clara deste número desde 2014 e de se ter verificado uma maior convergência com a média da área do euro, é possível fazer mais.

Sabendo que atualmente o papel das transferências sociais na redução da incidência da pobreza infantil se encontra ainda abaixo da média europeia, é necessário olhar criticamente para as mesmas. Atentando, por exemplo, sobre o RSI salta à vista que o mesmo está tolhido nas suas potencialidades por causa do preconceito. O mesmo é marcado por montantes de subsídio muito baixos (que ficam muito aquém do limiar de pobreza), por critérios de elegibilidade muitíssimo apertados e, consequentemente, por uma fraca cobertura das necessidades que deveria servir. Sem poder contar com este instrumento para combater a pobreza infantil (uma vez que ele apenas atenua a severidade da pobreza), a luta contra a pobreza infantil faz-se essencialmente apontando exclusivamente às necessidades das crianças, sem cuidar da reabilitação das suas famílias, através do abono de família e do Complemento Garantia para a Infância, conjuntamente com as deduções fiscais dos dependentes, em sede de IRS, e a aposta nas creches gratuitas.

A luta consciente contra o preconceito em relação à pobreza é muito relevante para um olhar sobre a pobreza infantil, em todas as suas dimensões. Não só para a satisfação das necessidades específicas das crianças, mas também da família em que se estas inserem, de forma que todo o desenvolvimento infantil seja promovido e apoiado, em todas as dimensões fundamentais.

Resta dizer que toda a poupança que se tenta fazer no que toca à pobreza infantil acaba por trazer depois uma fatura muito maior para pagar. Não podemos esquecer que a pobreza infantil está associada à criação de ciclos de pobreza, causados pela forte propensão das pessoas que sofrem com ela apresentarem, nomeadamente, uma saúde mais débil, uma educação aquém dos objetivos e uma elevada propensão para o desemprego. Tudo o que se pretende poupar agora traduz-se, portanto, no futuro, no dobro ou no triplo da despesa pública.

Por tudo isto, o problema da pobreza infantil não pode deixar de constituir um consenso entre todos os partidos. Consenso este que se deveria traduzir em concreto no comprometimento com o estudo e a definição clara das necessidades que devem ser atendidas na infância e do contexto em que a mesma se desenrola. Deveria traduzir-se também, em concreto, na definição consensual dos meios financeiros necessários para atingir a meta já definida para 2030 na Estratégia Nacional de Erradicação da Pobreza.

Pela minha parte, medirei o comprometimento de cada um dos partidos, nos seus programas eleitorais, com a erradicação da pobreza pelo comprometimento com a dignidade de todos e com construção de uma sociedade mais justa. Com particular atenção para o comprometimento com o tema da pobreza infantil.

QOSHE - Comprometimento com a erradicação da pobreza infantil - Maria D&x27Oliveira Martins
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Comprometimento com a erradicação da pobreza infantil

12 1
08.02.2024

Existem sentimentos de rejeição em relação aos mais pobres, com base nos mais básicos instintos de repulsa e medo perante quem tem de depender dos outros para viver.

Este sentimento de rejeição torna-se visível na formulação de mitos – que mais não são do que preconceitos, sem adesão à realidade – sobre a pobreza. Crê-se, por exemplo, que todos os pobres são culpados pela sua situação ou que todos eles tiram vantagens do assistencialismo, usando de todos os esquemas e artifícios para obter subsídios.

A rejeição aprofunda-se se os mais pobres são estrangeiros, uma vez que este sentimento se mistura com o racismo e a xenofobia. Em casos mais extremos, esta materializa-se na prática de crimes contra os mais pobres: agressões físicas, tratamento vexatório e em certos casos até tentativas de homicídio.

A aversão aos mais pobres está tão interiorizada que faz com que nas grandes cidades se aceite de forma quase inconsciente e acrítica uma gestão do espaço público que lhes é hostil. Esta hostilidade é muito evidente em certos elementos urbanos impeditivos de que pessoas sem-abrigo possam ocupar o espaço público: pedras colocadas sob viadutos, grades em volta de canteiros ou sítios relvados, elementos pontiagudos firmados em vãos de estações de transporte público, goteiras estrategicamente posicionadas e programadas em sítios abertos debaixo de prédios, floreiras em frente a espaços comerciais, bancos de jardim divididos ou cortados a meio, bancos públicos com dimensões ou curvaturas que não permitam a uma pessoa deitar-se. Torna-se também evidente no número crescente de países que criminalizam a mendicância ou a regulam........

© Expresso


Get it on Google Play