A habitação é uma fratura exposta em Portugal. A ideia da frase anterior é d’A Garota Não, cantada com Chullage na música “Não sei o que é que fica”. A crise da habitação resume-se na refrão de quem só vinha falar de amor, mas acaba confrontada com o despejo da porta ao lado: “Cai uma família, fica o azulejo”.

Já o Gandim, fez-se acompanhar da Ana Bacalhau para narrar a sua procura por casa e o título da música diz quase tudo: “Rendas altas”. O sentimento dele é o de muitos nós quando somos apanhados pelos preços na selva atual - “os preços que eu vi, até me cuspi”. É um choque olhar para o recibo de vencimento e comparar com os anúncios de arrendamento. Não há salário que resista, os paus ao fim do mês só dão mesmo para uma cabana. “Com estas rendas altas ninguém aguenta, sair de casa dos papás nem aos quarenta” resume Ana Bacalhau.

Com outro ritmo, mas o mesmo sentimento, Eu.clides canta a brutalidade urbana: “Tê dois / Tê um / Tê zero / Mais um tê menos um”. “Desarrendou, sai sai”, é a notícia dura que muitas pessoas têm dos seus senhorios, ávidos na especulação e que lhes nega o direito à habitação. Mas deixa o aviso: “Aproveite enquanto a bolha está a inchar. Senhorio, não se apoquente, o lavrador / Nunca morde a não ser que tenha fome”.

Estes são três exemplos de músicas sobre o flagelo da habitação no nosso país. Para as classes médias ou mais remediadas, não há salário que aguente os preços que a especulação impõe. O mercado da habitação globalizou-se, as casas já não são para quem lá quer viver, são para quem com elas quer especular. Por isso são precisas novas políticas, medidas corajosas que defendam as pessoas deste ataque. Sim, porque é um ataque que nos estão a fazer quando nos negam o direito à habitação, quando condenam uma geração a ficar presa na casa dos pais porque não tem mais para onde ir. Ou porque nos empurram para fora do país porque não há salários por cá que paguem um sítio digno para viver.

Músicas de intervenção, arte em luta, artistas que dão corpo à nossa indignação. Agora seremos nós a continuar essa luta, a levar para a rua essas bandeiras. No próximo sábado, por todo o país, as pessoas sairão às ruas das cidades em luta para terem uma casa. “Casa para viver” - um direito que é teu, uma luta que é de todos nós. No sábado as ruas serão o palco dessa luta.

Acabei o curso, comecei a trabalhar
conselho dos pais, matei-me a estudar
ordenado base, mil e duzentos paus
não está nada mau, para o que a malta anda a ganhar
comecei a procurar uma casa para arrendar
um pequeno apartamento, só para mim pode ser pequeno
afastado ou centro, no OLX
os preços que eu vi, até me cuspi
Mil e oitocentos
um T1 em Lisboa
Precisa de mil obras e já lá mora uma pessoa
aumento o raio até à Brandoa
T2 em mau estado, menos de mil nem na Amadora
800 paus por uma casa que é uma cave, é sodomia
tem uma janela não é grave e a senhoria
mora lá cima, é minha vizinha e adivinha
a sanita é na cozinha
Não há, recibo nem contrato
ela diz que o bairro é pacato
tou por tudo, tou farto, já aceito um vão de escada
sortudo do Harry Potter que não pagava nada

Nem ganho para um quarto
estão a gozar comigo
sendo assim, sendo assim
vou ser sem-abrigo
Com estas rendas altas ninguém aguenta
Sair de casa dos papás nem aos quarenta
Tenho o sofá de um amigo
ou ser sem-abrigo

Casa dos pais com esta idade,
não há privacidade
pinar devagarinho, gemer baixinho,
pa não acordar a mãe
só quando estamos sozinhos é que sei se ela se v

Quem escreveu os três porquinhos só nos mentiu
hoje viviam os três juntos e o lobo era o senhorio
por isso é que os anões dividiam uma casinha
e ainda aceitaram mais uma inquilina

É lógico, vou viver com os meus pais até ser old
sou nómada analógico e não tenho um visto gold
Vou ver se sou preso, cama de borla e uma sandes
Ou pior que isso, ir viver para Abrantes
Um T0 em bom estado, tu pensas
Abaixo do mercado, vai ter surpresas
Novecentos euros e duas rendas, sem despesas
Dez metros quadrados sem janelas, nem despensa
Beliche partilhado, frigorífico ao lado
diz que é co-living, não é especulação
Ainda acabo numa roulote, em segunda mão
a cheirar a farturas e a sandes de leitão
vejo um anúncio de um estúdio barato, no Idealista
um achado, rés do chão, mas boa vista,
boa área bruta, fiz refresh, foi apagado
filhos da

Dos governantes que não nos tiram desta crise
Com estes preços nem arranjo uma marquise
vou criar um onlyfans e vender os meus feet
ou viver com dez indianos e bulir na uber eats

Mil paus, um contentor num piso térreo
isolado, ao lado caminho férreo
neste estado, já perdi todo o critério
até vivo acampado num cemitério
Ainda pedem três meses de renda adiantado e exigem
caução, fiador, e sangue de uma virgem
madeixa de crina de unicórnio
e certidão do papa a dizer que sou idóneo

Tenho um amigo que acabou com a namoradaeles não se falam, mas cruzam-se em casa
amor e cabana ou uma tenda
juntos pra sempre por causa da renda
Comprar em vez de arrendar, dizem os Martins
Com guita dos pais também eu falo assim
só tenho uma entrada se vender dois rins
Sem contar com a escritura, seguros e IMIS
IMT, Euribor, imposto de Selo, juro
TAEG, taxa de esforço, mais seguros
certificado energético, mais valias, tu consegues
Condomínio, Prestação, SPREAD your legs
Nasci na geração errada, foi por um triz
nunca quis, mas vou deixar o meu país
Vou ter ter de emigrar e tentar ser feliz
em cidades mais em conta como Londres ou Paris

QOSHE - Na rua para ter uma casa - Pedro Filipe Soares
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Na rua para ter uma casa

7 0
25.01.2024

A habitação é uma fratura exposta em Portugal. A ideia da frase anterior é d’A Garota Não, cantada com Chullage na música “Não sei o que é que fica”. A crise da habitação resume-se na refrão de quem só vinha falar de amor, mas acaba confrontada com o despejo da porta ao lado: “Cai uma família, fica o azulejo”.

Já o Gandim, fez-se acompanhar da Ana Bacalhau para narrar a sua procura por casa e o título da música diz quase tudo: “Rendas altas”. O sentimento dele é o de muitos nós quando somos apanhados pelos preços na selva atual - “os preços que eu vi, até me cuspi”. É um choque olhar para o recibo de vencimento e comparar com os anúncios de arrendamento. Não há salário que resista, os paus ao fim do mês só dão mesmo para uma cabana. “Com estas rendas altas ninguém aguenta, sair de casa dos papás nem aos quarenta” resume Ana Bacalhau.

Com outro ritmo, mas o mesmo sentimento, Eu.clides canta a brutalidade urbana: “Tê dois / Tê um / Tê zero / Mais um tê menos um”. “Desarrendou, sai sai”, é a notícia dura que muitas pessoas têm dos seus senhorios, ávidos na especulação e que lhes nega o direito à habitação. Mas deixa o aviso: “Aproveite enquanto a bolha está a inchar. Senhorio, não se apoquente, o lavrador / Nunca morde a não ser que tenha fome”.

Estes são três exemplos de músicas sobre o flagelo da habitação no nosso país. Para as classes médias ou mais remediadas, não há salário que aguente os preços que a especulação impõe. O mercado da habitação globalizou-se, as casas já não são........

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