Luís Montenegro sacudiu a responsabilidade pelo passado enquanto podia. Tentou virar a página, mostrar uma versão mais moderninha, mas um passado assim não se consegue varrer para debaixo do tapete, volta sempre para nos assombrar: era uma questão de tempo. E foi assim, no Algarve de Cavaco, que Passos Coelho entrou de rompante na campanha eleitoral.

Sei o que fizeste num governo passado, começaram logo a dizer os pensionistas. Ato reflexo levaram a mão ao bolso para garantir que ninguém lhes mexe na carteira. O trauma foi grande, o desrespeito ainda maior. E nas palavras de Montenegro “se eu algum dia tiver de cortar um cêntimo numa reforma, demito-me”, ecoam as de Passos Coelho quando perguntado sobre o mesmo: “nós nunca falámos disso e isso é um disparate”. A ferida aberta permanece e a desconfiança cavou ainda mais fundo - o PSD é mesmo o partido que corta pensões e reformas.

Mas as assombrações não chegam apenas com o cheiro a mofo do passado. Passos Coelho mostrou que sabe navegar os novos ventos, o mesmo caldo em que a extrema direita medra. É certo que Ventura o teve como padrinho quando debutou na política, que o Chega é uma spin-off do PSD criada por descontentes com Passos e Montenegro pela apatia perante a liderança de Rui Rio, que a linha política extremada já medrava, mais ou menos subterrânea, por aqueles corredores. Mas Passos não usou só linha política emprestada da extrema direita, pegou também nos seus truques.

Dog Whistle: a técnica discursiva utilizada pela extrema direita ganhou o seu nome dos apitos para cães que usam frequências que só esses animais ouvem e estão além da capacidade de audição humana. A tradução disso para a política é simples: usa-se uma linguagem em código que pode ter um significado ou ser aceitável para a população em geral, mas tem um significado específico e diferente para um subgrupo-alvo. Foi isto que fez Passos Coelho.

Ao juntar o tema da imigração com questões de segurança, insinua, contra todas as evidências, uma relação. Os dados refutam a ideia, a realidade desmente Passos Coelho, as contas da Segurança Social (as mesmas que servem para pagar as pensões) comprovam a integração e o sucesso da imigração. Passos Coelho dirá que não insinuou, Montenegro já veio fazer o papel de intérprete e explicar que é preciso imigração mas com integração, e os comentadores já vieram normalizar as declarações do antigo primeiro-ministro. Assim, normalizam a mensagem para que seja vendável à população em geral ao mesmo tempo que a mensagem subliminar é entregue em força ao mundo da extrema-direita: há no PSD quem vos ouve.

Além da proximidade histórica, dos percursos políticos partilhados, esta é mais uma demonstração que o PSD e a dita direita tradicional está disponível para apadrinhar discursos de extrema direita e que incitam ao ódio contra imigrantes. Passos Coelho deixou bem explícito o que Montenegro sempre tinha procurado esconder.

Contudo, o PS também tem responsabilidades neste processo. A imigração só tem sido tema em Portugal pelas más políticas do Governo e da sua maioria absoluta: atrasos desumanos nos processos administrativos, condições de trabalho miseráveis, habitações sobrelotadas, falta de ensino de português língua não materna nas escolas. Se o Governo garantisse a aplicação da lei, a eficiência dos serviços públicos, o acompanhamento dos processos de integração e promovesse a plena inclusão no sistema de ensino, não havia qualquer campanha possível para a extrema direita.

A imigração não é um problema no nosso país, não devia sequer ser tema de campanha eleitoral. O PSD quis piscar o olho ao eleitorado do Chega e com isso fomentou o ódio contra imigrantes. O PS deixou que os atrasos nos processos e o atropelo de direitos humanos fosse aproveitado nesta jogada.

QOSHE - O dia em que tudo mudou - Pedro Filipe Soares
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O dia em que tudo mudou

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28.02.2024

Luís Montenegro sacudiu a responsabilidade pelo passado enquanto podia. Tentou virar a página, mostrar uma versão mais moderninha, mas um passado assim não se consegue varrer para debaixo do tapete, volta sempre para nos assombrar: era uma questão de tempo. E foi assim, no Algarve de Cavaco, que Passos Coelho entrou de rompante na campanha eleitoral.

Sei o que fizeste num governo passado, começaram logo a dizer os pensionistas. Ato reflexo levaram a mão ao bolso para garantir que ninguém lhes mexe na carteira. O trauma foi grande, o desrespeito ainda maior. E nas palavras de Montenegro “se eu algum dia tiver de cortar um cêntimo numa reforma, demito-me”, ecoam as de Passos Coelho quando perguntado sobre o mesmo: “nós nunca falámos disso e isso é um disparate”. A ferida aberta permanece e a desconfiança cavou ainda mais fundo - o PSD é mesmo o partido que corta pensões e reformas.

Mas as assombrações não chegam apenas com o cheiro a........

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