A semana passada, o European Social Survey concluiu, mais uma vez, que os portugueses são dos povos mais insatisfeitos com os seus políticos. É um cenário tétrico. A forma inesperadamente transparente como foi escolhida a Comissão Técnica Independente do novo aeroporto de Lisboa é um exemplo de como reconquistar a confiança no poder público. Mas não é só a localização que interessa definir. Precisamos de discutir que tipo de infraestrutura será construída. Poderá o aeroporto contribuir para que os portugueses voltem a orgulhar-se do país que lhes coube?

Parece uma ideia rococó, mas a construção de uma grande infraestrutura -- como um aeroporto internacional -- pode afetar a engenharia social de um país. Em 1987, a conversão do aeroporto Keflavík na Islândia, originalmente uma base militar americana, num aeroporto civil inchou o patriotismo dos nórdicos. Os mega-aeroportos de Singapura e do Dubai representaram a Conquista de Ceuta dos respetivos países.

Por outro lado, a construção de aeroportos é muitas vezes contestada. É um elemento de divisão e não de agregação. Só em 2023, a construção de novos aeroportos (ou alargamentos) na Albânia, Reino Unido, Indonésia, Nigéria ou Índia tem sido afetada por protestos ambientais ou sociais. A contestação enfática de ambientalistas à expansão do aeroporto de Bristol chegou este ano à Suprema Corte Britânica. Em 2018, o governo francês abandonou o projeto de construção do aeroporto Notre-Dame-des-Landes em Nantes, depois de uma década de protestos, muitos deles violentos, conduzidos por ambientalistas. A Vinci, concessionária dos aeroportos portugueses, tinha vencido o concurso público para administrar o novo aeroporto francês.

A construção do novo aeroporto de Lisboa será desafiante. No pior cenário, escavaríamos o fundo do poço. A extrema-direita tentaria transtornar o processo de decisão política, como começou já a fazer André Ventura. Para que seja uma verdadeira decisão nacional, o governo precisaria de estar devidamente legitimado, o que seria difícil de concretizar se a abstenção eleitoral continuasse a crescer. Nas eleições de 2022 que deram a vitória absoluta ao PS, apenas 2,3 milhões votaram nos socialistas entre 11 milhões de eleitores. Faltariam também bons quadros portugueses, principalmente engenheiros, devido à doença hemorrágica causada pela emigração. Teríamos de importar trabalhadores estrangeiros, o que inflamaria as hostes extremistas. Se a construção seguisse adiante, os nossos jovens ativistas climáticos, seja nas ruas ou nos tribunais, tentariam opor-se à construção de um mamute de betão que contribui para a fossilização da economia.

Como tantos outros projetos que falham em Portugal (alta velocidade ferroviária, terceira ponte sobre o Tejo, cidade sustentável em Matosinhos, PlanIT Valley, Lisbon South Bay na margem sul do Tejo), o novo aeroporto seria mais um exemplo de um projeto público mal formulado, executado, financiado ou monitorizado, como retratei neste artigo. Seria um exemplo de uma governação inspirada apenas pela necessidade de cumprir disposições legais, pela vontade de deixar pequenas marcas pessoais na administração pública ou para dilatar o valor partidário. Cumprir-se-ia a reflexão de Eduardo Lourenço para Mário Soares: “A nossa história é um estendal de ocasiões perdidas ou falhadas, e esta mesma constância constitui assunto de meditação.”

No melhor cenário, o governo galvanizaria a sociedade, e principalmente os jovens, à volta de uma solução pioneira: a construção de um aeroporto sustentável. O mais sustentável da Europa. A principal referência internacional no setor aeroportuário. Um projeto qualitativo e não quantitativo. Se o decreto de março de 1969 do Conselho de Ministros que criou o Gabinete do Novo Aeroporto de Lisboa autojustificou-se pelo fato da “evolução do tráfego aéreo” estar-se a processar, na década de 60, “num ritmo que muitas vezes ultrapassa as mais amplas previsões”, o novo aeroporto de Lisboa, o que será anunciado em 2024, deve justificar-se pela necessidade de se construir uma infraestrutura alinhada com a emergência climática.

Alguns aeroportos já são neutros em emissões de carbono. O de Arlanda em Estocolmo foi o primeiro no mundo a ter uma licença ambiental que inclui um limite para as suas emissões de dióxido de carbono, estabelecido em 1990. Atingiu a neutralidade carbónica em 2009. Quase 600 aeroportos em 91 países já aderiram ao programa Airport Carbon Accreditation da Airports Council International (ACI), com o objetivo de atingirem o ponto de equilíbrio entre as emissões de gases com efeito de estufa e o seu sequestro da atmosfera.

Mas a emissão de gás carbónico é apenas um indicador da sustentabilidade de um aeroporto. Temos de levar em conta todas as fases de desenvolvimento do projeto e todos os elementos da sustentabilidade, incluindo os sociais, ambientais e económicos. E devemos contabilizar também as emissões das aeronaves. Um dos melhores exemplos, ainda que em pequena escala, é o aeroporto Ecológico Seymour nas Ilhas Galápagos, operacional desde 2012. Foi construído e é operado em regime de economia circular, um conceito que assenta na redução, reutilização, recuperação e reciclagem de materiais e energia.

Quem seria o jovem ativista ambiental que se oporia a um projeto desta natureza em Portugal? Quem seria o jovem emigrante português que não se sentiria agradado? Quem seria o insatisfeito com a passividade do poder político que não se sentiria saldado?

QOSHE - Novo aeroporto de Lisboa: um fóssil ou modelo de modernidade? - Rodrigo Tavares
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Novo aeroporto de Lisboa: um fóssil ou modelo de modernidade?

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06.12.2023

A semana passada, o European Social Survey concluiu, mais uma vez, que os portugueses são dos povos mais insatisfeitos com os seus políticos. É um cenário tétrico. A forma inesperadamente transparente como foi escolhida a Comissão Técnica Independente do novo aeroporto de Lisboa é um exemplo de como reconquistar a confiança no poder público. Mas não é só a localização que interessa definir. Precisamos de discutir que tipo de infraestrutura será construída. Poderá o aeroporto contribuir para que os portugueses voltem a orgulhar-se do país que lhes coube?

Parece uma ideia rococó, mas a construção de uma grande infraestrutura -- como um aeroporto internacional -- pode afetar a engenharia social de um país. Em 1987, a conversão do aeroporto Keflavík na Islândia, originalmente uma base militar americana, num aeroporto civil inchou o patriotismo dos nórdicos. Os mega-aeroportos de Singapura e do Dubai representaram a Conquista de Ceuta dos respetivos países.

Por outro lado, a construção de aeroportos é muitas vezes contestada. É um elemento de divisão e não de agregação. Só em 2023, a construção de novos aeroportos (ou alargamentos) na Albânia, Reino Unido, Indonésia, Nigéria ou Índia tem sido afetada por protestos ambientais ou sociais. A contestação enfática de ambientalistas à expansão do aeroporto de Bristol chegou este ano à Suprema Corte Britânica. Em........

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