Por vezes, emociona-me a grande quantidade de beleza que as nossas mãos produzem. Não me interessa nada o posicionamento cool de alguns artistas, o distanciamento superior de tudo o que toca e comove.

O contrário também não me interessa, acho até abominável como o homem das neves: parece-me que vivemos na era do emocionalismo - palavra por cunhar -, que é uma doença infecciosa que brota do umbigo e se espalha pelo ego inteiro, chegando depois a toda a sociedade. Vivemos na época em que a emoção conta como facto, em que o drama pessoal se sobrepõe à razão das coisas. E isto talvez crie nos artistas verdadeiramente sensíveis aversão ao tocante.

Eu encontro beleza por todo o lado - beleza artística, isto é. Tal beleza vive num sítio diferente da indiferença e da emoção. É a beleza das coisas feias, a beleza das crises, do drama, a beleza das ideias que falham - enfim, é a matéria dos livros e das histórias. Não é nada cool. Também não é nada sentimental.

E por vezes encontro peças de arte que traduzem isto na medida certa. Criam-nas artistas funâmbulos que nunca caem. Mas nós vemo-los bambolear na corda bamba, achamos que estão prestes a cair.

Don Hertzfeldt é um grande funâmbulo, maior do que Philippe Petit, autor da célebre travessia entre as Torres Gémeas em 1974. Escritor, desenhador, animador, artista e génio, Don Hertzfeldt conseguiu em “It’s such a beautiful day”, um filme de animação, o equilíbrio perfeito entre drama existencial, comédia, desamparo e esperança. Conseguiu beleza.

Bill, um boneco tosco e mal desenhado, enfrenta o drama da morte e espera contra toda a esperança. A voz que o narra, além do traço que o desenha, são a maravilha autoral de Don Hertzfeldt. Este diz que a inspiração é uma festa para a qual não fomos convidados. “It’s such a beautiful day” é de facto um filme inspirado e uma festa criativa.

Bill, o boneco, tem vida, Bill, o boneco, podia estar dentro de nós em busca da dimensão a que o nosso espírito pode chegar. Além disso, Bill usa chapéu.

“It’s such a beautiful day” tem uma grande quantidade de beleza, ou seja, tem uma grande quantidade de verdade. É de 2012, mas só agora chegou a Portugal, esse país inacessível onde certas coisas boas, por vezes, ainda demoram a chegar, apesar de a Internet não ter distâncias. Esta pérola de Don Hertzfeldt está disponível a partir de amanhã na Filmin.

QOSHE - "It's such a beautiful day" - Afonso Reis Cabral
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"It's such a beautiful day"

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27.03.2024

Por vezes, emociona-me a grande quantidade de beleza que as nossas mãos produzem. Não me interessa nada o posicionamento cool de alguns artistas, o distanciamento superior de tudo o que toca e comove.

O contrário também não me interessa, acho até abominável como o homem das neves: parece-me que vivemos na era do emocionalismo - palavra por cunhar -, que é uma doença infecciosa que brota do umbigo e se espalha pelo ego inteiro, chegando depois a toda a sociedade. Vivemos na época em que a emoção conta como facto, em que o drama pessoal se sobrepõe à razão das coisas. E isto talvez crie nos........

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