Eis que amanhã passou uma vida desde o 25 de Abril. Vidas inteiras, uma ou duas eras. Cinquenta anos depois, corremos o risco de achar que a liberdade é feita de pedra e se transformou numa estátua ornamental, em algo que as décadas cristalizaram e que não precisa de alimento. Aos poucos, sem nos apercebermos, corremos o risco de desvalorizar o ideal que deu forma à estátua.

Na história da humanidade, fomos perdendo e ganhando a liberdade numa longa narrativa que rivaliza com a literatura mitológica, em que os ideais, as garantias e os direitos se materializam em figuras concretas, como se fossem de carne e osso. A liberdade andava presa e nós libertámo-la.

Mas foi há cinquenta anos. Quase parece ancestral como a mitologia, e perante esse momento, para muitos antigo, antiquíssimo, arriscamo-nos a achar que a liberdade também é antiga, antiquíssima - um velho ideal que não muda e que ninguém nos pode roubar.

Quem nasceu depois da Revolução, como a geração a que pertenço, não sabe de que cor eram os lápis. Tendo nascido nós em plena democracia, conquistas como a liberdade de expressão parecem, ilusoriamente, factos adquiridos que sempre assim permanecerão, por, a nossos olhos, sempre assim terem permanecido. Porém, vivemos o advento dos novos populismos e somos confrontados com a pressão da massa, indistinta e vaga, mas cada vez mais presente.

A ideia original de panóptico resultava pela sua simplicidade: as celas das prisões eram observadas por meia dúzia de guardas a partir de um único ponto. Para controlar os prisioneiros, bastava a sensação de estarem a ser vistos.

Hoje, vivemos num panóptico digital que tem uma arquitectura semelhante - simples e eficaz. Mas agora todos observam todos, mesmo quando ninguém observa ninguém. Quando a pressão da massa aperta, encontramos refúgio num conformismo medíocre que é, em si mesmo, produto da liberdade constrangida.

Face ao panóptico digital, que nada perdoa e tudo vigia, sente-se que não há espaço para um debate de ideias franco, moderado e com nuances. Muitos não estão para isso, preferem não fazer frente à vozearia, que é o espaço de combate perfeito para quem fala mais alto.

Embora, institucionalmente falando, a liberdade de expressão não esteja ameaçada, o espaço público tende a degradar-se. Passou de debate a entretenimento, em jeito de “panem et circenses”. Haverá melhor entretenimento do que os berros dos radicais, que adoram fazer-se ouvir sobre o silêncio dos moderados? Fenómenos de direita radical medraram nessa chaga, o moralismo “woke” também.
Vai-se instalando a ideia de que a liberdade de expressão é um direito com reticências, cada vez com mais excepções. Apenas isso explica - entre muitos outros exemplos - aceitarmos com certa indiferença que a Alemanha tenha proibido Varoufakis de dar uma palestra sobre a Palestina.

De excepção em excepção, lá vamos cinzelando a estátua que herdámos. Espero que um dia não a quebremos ao meio.

*O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Cinquenta anos é muito tempo - Afonso Reis Cabral
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Cinquenta anos é muito tempo

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24.04.2024

Eis que amanhã passou uma vida desde o 25 de Abril. Vidas inteiras, uma ou duas eras. Cinquenta anos depois, corremos o risco de achar que a liberdade é feita de pedra e se transformou numa estátua ornamental, em algo que as décadas cristalizaram e que não precisa de alimento. Aos poucos, sem nos apercebermos, corremos o risco de desvalorizar o ideal que deu forma à estátua.

Na história da humanidade, fomos perdendo e ganhando a liberdade numa longa narrativa que rivaliza com a literatura mitológica, em que os ideais, as garantias e os direitos se materializam em figuras concretas, como se fossem de carne e osso. A liberdade andava presa e nós libertámo-la.

Mas foi há cinquenta anos. Quase parece ancestral como a mitologia, e perante esse momento,........

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