Stoner é personagem de livro, e num livro viveu de mansinho e de mansinho morreu. Quem o visse de longe, ou se cruzasse com ele no supermercado, encontrava um professor universitário apagado, contendo uma certa emoção mas sempre sobre várias camadas, via um homem envelhecendo na sua mediania. Se Stoner fosse um parágrafo, seria pouco mais interessante do que este.

Assim o criou John Williams (1922-1994), ele próprio um professor apagado de quem se diz que continha uma certa emoção escondida em muitas camadas. Percebe-se que a sua escrita é uma barragem: por um lado detém, por outro acumula. Num romance muito clássico, que aparentemente tinha tudo para ser esquecido (como foi), Williams constrói Stoner, dando vida - muita vida - a uma tela cinzenta.

Stoner (Dom Quixote, 2014) é um romance fenomenal. Não falo do fenómeno da sua redescoberta, da escritora francesa que o salvou do esquecimento há dez anos e o lançou internacionalmente, mas sim de uma subtileza sedutora que faz de Stoner, o personagem, alguém que fica.

Traçada a linha da sua vida, igual a tantas outras - semelhante na dor, parecida na alegria -, custa compreender a causa da empatia. Talvez porque o professor Stoner perfeitamente podia ter sido outra pessoa qualquer. As pequenas decisões que levam a grandes desenlaces são uma constante, e Stoner alia algo impossível: um desapego obstinado pelos acontecimentos importantes; e um apego desobstinado pelos acontecimentos indiferentes. Nestes nós mentais deambula Stoner.

A vida acontece-lhe à distância da nossa leitura, como se conhecêssemos profundamente alguém que continua, todavia, distante. E isto perturba, tanto mais que através do exemplo de Stoner - desse ser de papel - desconfiamos que o mesmo pode acontecer com quem nos cruzamos e, pior, com quem amamos.

Além do mais, Stoner é um perfeito exercício da imaginação: mas que ela seja só literária não faz sentido. Encontramos Stoners todos os dias. Na rua ou em casa, no trabalho ou na caixa de supermercado, o meu semelhante é tão profundo quanto profunda for a imaginação. Caso contrário, o meu semelhante em nada se assemelha a mim.

David Foster Wallace falava disto num discurso a alunos universitários. Na fila do supermercado, mesmo à tua frente, o homem que se atrasa pode ser apenas um estorvo; mas será muito mais próximo se a imaginação o criar, e se nesse esforço de empatia ganhar vida. Passar a pertencer-nos intimamente. Na espera para a caixa, o homem que nos aborrece pode afinal ser grande como William Stoner.

Engrandecer os outros é coisa de livro. Mas bem podia ser coisa de supermercado.

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

QOSHE - Coisa de supermercado - Afonso Reis Cabral
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Coisa de supermercado

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29.11.2023

Stoner é personagem de livro, e num livro viveu de mansinho e de mansinho morreu. Quem o visse de longe, ou se cruzasse com ele no supermercado, encontrava um professor universitário apagado, contendo uma certa emoção mas sempre sobre várias camadas, via um homem envelhecendo na sua mediania. Se Stoner fosse um parágrafo, seria pouco mais interessante do que este.

Assim o criou John Williams (1922-1994), ele próprio um professor apagado de quem se diz que continha uma certa emoção escondida em muitas camadas. Percebe-se que a sua escrita é uma barragem: por um lado detém, por outro acumula. Num romance muito clássico, que aparentemente tinha tudo para ser........

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