O que era uma rapariga, senão um estranho ser? Estranho ser que não existia sozinho: para nós, apenas existiam as raparigas que eram irmãs deste ou daquele, primas do outro, conhecidas de alguém.

Fruto de certa solidão e de frequentarmos um colégio para rapazes, o feminino só existia pela mão do masculino. Quando um de nós aparecia à porta do colégio próximo de uma rapariga, era como se tocasse o divino. E tal não se faz sem transgredir, o que nos levava a desconfiar do sortudo.

Lá andávamos pelos corredores na contenção de quem se sente incompleto. Embora gabassem o ensino do colégio, faltava metade da existência para aprendermos realmente a viver. Não conseguíamos chegar a sítio nenhum sem metade do mapa. Andávamos, portanto, desgovernados.

Se, por acidente, me cruzava com uma rapariga, eu sentia-me desabar interiormente. Queria em desespero dizer-lhe: “encontrei-te, por fim”, mas, desabado, nem as palavras que aprendia nas obras de literatura conseguia usar. Saía-me um balbucio incompreensível. Encontrá-las por desígnio era ainda pior, já que me faltava a desculpa do acidente.

Num magusto que juntava as raparigas e os rapazes dos colégios foi assim: vi ao longe a M., a mais bela porque a mais loira. Dizia-se que fazia equitação, dizia-se que governava o mundo.

Farto de tanto acabrunhar, e achando-a belamente misteriosa, avancei com o discurso ensaiado, para evitar o balbucio. Algumas já dançavam em círculo. Ela não. Aproximei-me, pequeno, da altura dos meus doze anos, e apenas soube fazer como nos livros antigos e nas vidas antigas, apenas soube fazer como ouvia em casa, por piada.

Perguntei-lhe: “A menina dá-me a honra desta dança?”

A M. ficou surpreendida. Eu fiquei surpreendido com a surpresa. O grupo à volta surpreendido também. Espantado, com a M. gaguejante, insisti, mas agora de joelhos: “A menina dá-me a honra desta dança?”

Não sei o que se jogava naquela dança por dançar. Mais tarde, fui a chacota dos amigos, que cantarolavam nos corredores uma melodia aparentada de Quim Barreiros sobre a M. e o Afonso, o Afonso e a M. Jogava-se talvez o encontro desencontrado que é esta dança entre desconhecidos que se querem unir.

Vendo-me ajoelhado e repetindo a frase feita, a M. ficou hirta e, de braços colados ao corpo, respondeu um “não” seco. Depois, voltou-me as costas por entre um bando de amigas - tinha acabado de aprender que os rapazes eram seres estranhos e misteriosos dos quais mais valia desconfiar.

QOSHE - Como se pede às raparigas para dançar - Afonso Reis Cabral
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Como se pede às raparigas para dançar

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03.01.2024

O que era uma rapariga, senão um estranho ser? Estranho ser que não existia sozinho: para nós, apenas existiam as raparigas que eram irmãs deste ou daquele, primas do outro, conhecidas de alguém.

Fruto de certa solidão e de frequentarmos um colégio para rapazes, o feminino só existia pela mão do masculino. Quando um de nós aparecia à porta do colégio próximo de uma rapariga, era como se tocasse o divino. E tal não se faz sem transgredir, o que nos levava a desconfiar do sortudo.

Lá andávamos pelos corredores na contenção de quem se sente incompleto. Embora gabassem o ensino do colégio, faltava metade da........

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