Neste fim-de-semana, mostraram-me um tesouro. Nos armazéns da Fundição de Oeiras está guardada, por enquanto, uma máquina do mundo. Aí podemos assistir à nossa história em néon e árgon. Aí se esconde um projecto que alia o engenho e o amor, coisas nem sempre conciliáveis.

Seria mais fácil para o leitor se eu o esclarecesse já e por inteiro. Como não quero negar-lhe um bom facilitismo, digo de supetão que este tesouro é dos mais valiosos que tenho conhecido. Tal riqueza deve-se a Rita Múrias e Paulo Barata, um casal de designers que, a partir de 2014, se entregou completamente a uma causa que é tanto deles quanto nossa.

Percebendo que a memória do país está também na forma como o comércio se publicita, e sabendo que dentro em breve nada sobraria de um passado marcante para os finais do século XIX e sobretudo para o apogeu do século XX, Rita Múrias e Paulo Barata começaram a recolher os letreiros de Lisboa e arredores; depois, dos arredores e país circundante.

Volvidos dez anos - de tantos sacrifícios, tanto olho atento, tanto suor, tanto dinheiro e tantas simpatias de desconhecidos -, têm hoje um acervo exemplar. Mais de quatrocentos letreiros, correspondentes a mais de duzentos estabelecimentos, que marcaram uma época e inúmeras vidas. Letreiros de farmácias, hotéis, sapatarias, cabeleireiros, restaurantes, bancos, bingos, casas de fado, oculistas, snack-bares. Há certamente, pelo menos, um letreiro por cada estabelecimento de que nos lembremos.

Esta máquina do mundo mostra-nos uma paisagem humana única. O acervo que este casal reuniu é de facto uma janela para um mundo perdido, para as vidas quotidianas que compuseram a história contemporânea das nossas cidades.

Nestes letreiros testemunhamos a esperança e a dedicação que milhares de portugueses puseram no seu sustento. São letreiros que mais parecem pessoas. E através deles vemos outra coisa ainda: o amor de Rita Múrias e Paulo Barata pela causa pública, já que o seu legado nos diz respeito a todos; mas também, decerto, o amor dos dois um pelo outro. Um amor que moveu montanhas - quase literalmente, dado que alguns letreiros (como os do Ritz e do NorteShopping) são monumentais.

Tudo sem qualquer apoio público. Acontece que este acervo historicamente significativo, que bem merecia um museu próprio, está em perigo de ficar sem casa. Em breve, a Fundição de Oeiras será um empreendimento urbano, e estes letreiros não têm, para já, sítio onde serem expostos.

Rita Múrias e Paulo Barata trabalharam dez anos para nós - e de graça. Sei que nenhum dinheiro público lhes pagaria uma década de amor e letreiros. Mas sei também que todo o dinheiro seria pouco para preservar esta faceta extraordinária da nossa história.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Letreiros que mais parecem pessoas - Afonso Reis Cabral
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Letreiros que mais parecem pessoas

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07.02.2024

Neste fim-de-semana, mostraram-me um tesouro. Nos armazéns da Fundição de Oeiras está guardada, por enquanto, uma máquina do mundo. Aí podemos assistir à nossa história em néon e árgon. Aí se esconde um projecto que alia o engenho e o amor, coisas nem sempre conciliáveis.

Seria mais fácil para o leitor se eu o esclarecesse já e por inteiro. Como não quero negar-lhe um bom facilitismo, digo de supetão que este tesouro é dos mais valiosos que tenho conhecido. Tal riqueza deve-se a Rita Múrias e Paulo Barata, um casal de designers que, a partir de 2014, se entregou completamente a uma causa que é tanto deles quanto nossa.

Percebendo que a memória do país está também na forma........

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