Hayao Miyazaki lançou um novo filme, dez anos depois do último. A boa-nova soa a coisa de privilégio, como se um artesão japonês nos oferecesse, quase de graça, uma peça cuidadosamente elaborada, fruto de uma maluqueira que nos grandes artesãos se chama arte.

Em Miyazaki, surpreende-me que as histórias não sejam contadas com eficácia. Os seus filmes têm sempre meia hora a mais, o que significa milhões de meias horas a mais nas mãos dos desenhadores, que fazem mover personagens à custa de traços infinitesimais, e infinitesimalmente repetidos. Uso esta palavra porque parece estrangeira, como estrangeiras parecem - e são - as histórias de Miyazaki.

São quase o oposto da eficácia ocidental, que dita no cinema (pelo menos, no americano) que um martelo só possa aparecer em determinada cena se for usado mais tarde - seja para pregar um prego, seja para esborrachar uma cabeça. Quem diz martelo diz qualquer outra coisa, ou até qualquer pessoa.

Depois, os filmes de Miyazaki têm religião, ou pelo menos têm filosofia. Não me refiro apenas ao xintoísmo. A partir dele, o realizador retrata uma espécie de ecologia religiosa, principalmente em “Nausicaä do Vale do Vento” e “A Princesa Mononoke”, que é talvez a mãe contemporânea de muitos activistas climatéricos mais jovens. Aposto que cresceram nos últimos vinte anos à sombra de Miyazaki.

Depois, ele é mestre nas personagens femininas. Não sei quem dizia que era muito fácil fazer uma personagem feminina forte: bastava imaginar um homem. Miyazaki recusa esta boutade sem sentido. Para personagens femininas fortes imagina mulheres fortes - e muito distantes de um dos lugares-comuns cinematográficos mais irrelevantes da actualidade, a strong female character. Ou seja, imagina pessoas completas, o que deveria ser uma das regras mais elementares da boa ficção.

De seguida, baralha tudo e segue contando à japonesa, coisa que ainda estou para compreender o que seja. Será um contar às arrecuas e aos arremessos. Em que as linhas secundárias - o tipo de narrativa que não interessaria ao Ocidente - têm tempo para se tecerem na história principal. Chihiro na viagem de comboio, por exemplo. Há muito que aprender com tal falta de eficácia absolutamente eficaz.

“O Rapaz e a Garça” chega para a semana aos cinemas. Nunca assisti a nenhum filme de Miyazaki no grande ecrã. Tenho-o visto na Netflix, e por vezes no médio ecrã que é o projector de minha casa. Assistirei pela primeira vez, mas já como convertido e de caderno de apontamentos na mão.

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

QOSHE - O novo Miyazaki - Afonso Reis Cabral
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O novo Miyazaki

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01.11.2023

Hayao Miyazaki lançou um novo filme, dez anos depois do último. A boa-nova soa a coisa de privilégio, como se um artesão japonês nos oferecesse, quase de graça, uma peça cuidadosamente elaborada, fruto de uma maluqueira que nos grandes artesãos se chama arte.

Em Miyazaki, surpreende-me que as histórias não sejam contadas com eficácia. Os seus filmes têm sempre meia hora a mais, o que significa milhões de meias horas a mais nas mãos dos desenhadores, que fazem mover personagens à custa de traços infinitesimais, e infinitesimalmente repetidos. Uso esta palavra porque parece estrangeira, como estrangeiras parecem - e são - as histórias........

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