Nas redes sociais do Chega, que convém seguir para compreendermos a psicologia comum daquele partido, embora o façamos com a sensação de que são geridas por gente sem cuidados de higiene, André Ventura é uma figura de acção.

Um boneco, um personagem cheio de qualidades (entre as principais qualidades, contam-se os defeitos), pronto a combater os vilões do sistema. Até a cara lavada e o sorriso meio disfarçado de quem, vai-se a ver, talvez não acredite de facto em tudo o que diz servem perfeitamente a marvelização da política.

Se todas as ficções têm um leitor ideal a quem se dirigir, aqui o eleitorado ideal é qualquer descontente, que os há muitos e com muitas razões. Mas o Chega trata os descontentes como se fossem crianças a quem é preciso dar o doce de uma boa performance.

E doces dá-os ao quilo. Vemos André Ventura em traquinices com canários; em chamadas usando telefones públicos que ninguém usa há vinte anos; vemo-lo sentado ao volante a queixar-se da caça à multa enquanto, no banco de trás, alguém simula com flashes caçá-lo em velocidades baixas; assistimos quando ele, namorando a câmara, nos faz choradinhos sobre a justiça depois de ter consultado um ecrã onde descobre que Sócrates interpôs mais um recurso; observamo-lo a usar uma pá com perícia, simulando varrer os rabos dos inimigos como parte da sua oferta de serviços de limpeza; e até o vemos no Parlamento a empunhar um extintor para demonstrar que é com esse instrumento que apagará o fogo da hipocrisia que incendiou a Assembleia da República e a “casa do primeiro-ministro”.

Eis que, um dia, Ventura descascou uma laranja. Descascou enquanto se ria dos oponentes, descritos não como tal nas suas redes sociais, mas como idiotas, estúpidos, arrogantes e traidores. No fim do vídeo em que a laranja passa um mau bocado (ninguém gosta de ser descascado em público), Ventura desabafa: agora, terá de ser ele a “comer a laranja”. Leia-se, comer os laranjas.

No meio de reels bem-dispostos - em que Ventura até é filmado a assobiar a canários, os quais, para delírio dos apoiantes, prontamente lhe obedecem, saltando, de acordo com as suas ordens mentais, de um poleiro para outro -, medra em grande o novo vocabulário político, tão em linha com a insanidade contemporânea.

A julgar pelas suas próprias redes sociais, este encantador de canários e oferecedor de serviços de limpeza, este descascador de laranjas e utilizador de hipérboles, este apagador das chamas da hipocrisia - enfim, este personagem absolutamente ficcional nunca debate, nunca contrapõe, longe dele alguma vez trocar ideias ou expor políticas.

Ventura destrói, Ventura arrasa, ele entala e acusa. E destrói e arrasa e entala e acusa em maiúsculas, não vá alguém achar que Ventura não é um verdadeiro Hulk.

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

QOSHE - Os reels do encantador de canários - Afonso Reis Cabral
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Os reels do encantador de canários

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21.02.2024

Nas redes sociais do Chega, que convém seguir para compreendermos a psicologia comum daquele partido, embora o façamos com a sensação de que são geridas por gente sem cuidados de higiene, André Ventura é uma figura de acção.

Um boneco, um personagem cheio de qualidades (entre as principais qualidades, contam-se os defeitos), pronto a combater os vilões do sistema. Até a cara lavada e o sorriso meio disfarçado de quem, vai-se a ver, talvez não acredite de facto em tudo o que diz servem perfeitamente a marvelização da política.

Se todas as ficções têm um leitor ideal a quem se dirigir, aqui o eleitorado ideal é qualquer descontente, que os há muitos e com muitas razões. Mas o Chega trata os........

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