Quando digo que gosto de podcasts, há quem responda que são só pessoas a falar. Mas pessoas a falar são a origem de todo o interesse: pessoas a falar criam e destroem mundos, pessoas a falar odeiam-se e amam-se, pessoas a falar salvam-se e perdem-se, pessoas a falar fazem e desfazem a história.

E até no mais puro palrar de duas crianças pequenas, que tudo falam e nada dizem, há a cativância absoluta de uma história. Os podcasts bem podem ter nome de língua estrangeira, mas esta limita-se a traduzir em contemporâneo algo nascido no início dos tempos - tão antigo quanto a necessidade de contar.

E de ouvir o que se conta. Tal necessidade está pintada de alto a baixo nas grutas de Lascaux e escrita de baixo a alto na boa literatura. Está no âmago de qualquer casal, e entre quem se ama. E povoa a melhor das solidões, que se quer com muitas companhias. Têm-me acompanhado muito, os podcasts.

Alguns, não os recomendo em público, por pertencerem às zonas escuras que, sem admitir, gostamos de visitar. “Serial Killers” é talvez o clássico, mas “Cults” fica nas cercanias.

Outros, aconselho. Um dos mais antigos, e provavelmente o que mais produziu doutrina e sucedâneos e versões em pó para misturar com água, chama-se “This American Life”. Sobrevive há mais de vinte anos apesar da voz desagradável (até adstringente) de Ira Glass, seu criador e narrador, que é um génio da narrativa. Trata-se de histórias de vida perfeitamente trabalhadas, e cada episódio assemelha-se a um pequeno livro onde tanto cabe e tanto poderia caber.

“Criminal” vem logo a seguir em qualidade, mas com mais pimenta e a voz suave de Phoebe Judge. E depois “99% Invisible” e “Dan Snow’s History Hit” e “Heavyweight” e “This is Love”, mas falta-me espaço para os descrever.

Por cá, sou menos conhecedor. Mas tenho acompanhado as séries do “Observador Plus”, que são recentes mas parecem ter nascido já nascidas. Perfeitamente maduras na hora de colher.

“O Sargento da Cela 7” é um relato fabuloso sobre a prisão e fuga de António Lobato, um militar português que esteve mais de sete anos em cativeiro durante a Guerra Colonial. “O Piratinha do Ar” narra a ousadia ingénua do rapaz de dezasseis anos que sequestrou um avião da TAP. E “O Encantador de Ricos” é a história do corretor Pedro Caldeira, e com ele um retrato possível de uns certos anos oitenta. Tudo com boa sonoplastia, bandas sonoras originais, testemunhos empolgantes e belos narradores.

Tudo disponível de graça nas plataformas habituais, como estão fartos de saber, e bem a tempo de darem a alguém pelo Natal.

QOSHE - Pessoas a falar - Afonso Reis Cabral
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Pessoas a falar

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20.12.2023

Quando digo que gosto de podcasts, há quem responda que são só pessoas a falar. Mas pessoas a falar são a origem de todo o interesse: pessoas a falar criam e destroem mundos, pessoas a falar odeiam-se e amam-se, pessoas a falar salvam-se e perdem-se, pessoas a falar fazem e desfazem a história.

E até no mais puro palrar de duas crianças pequenas, que tudo falam e nada dizem, há a cativância absoluta de uma história. Os podcasts bem podem ter nome de língua estrangeira, mas esta limita-se a traduzir em contemporâneo algo nascido no início dos tempos - tão antigo quanto a necessidade de contar.

E de ouvir o que se conta. Tal necessidade está........

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