O homem começou o pregão assim: “podia auxiliar-me, uma moedinha por favor, a minha mulher é inválida de uma operação, eu desempregado sem trabalhar, auxilie por favor.”

Tinha óculos embaciados, sapatos limpos mas com os atacadores gastos, em fios, e uma pochete cor-de-rosa onde guardaria a receita do negócio. Mas não havia negócio nem dinheiro.

Para o auxílio, vendia por cinco euros uns panos rendados pela mulher, que lhe telefonava a cada quinze minutos para perguntar se já vendera. “Está quase, é como te digo, está quase.”

Estava quase mas faltava. Os transeuntes iam a caminho de casa, dos cafés, dos carros, e ninguém parava o tempo bastante para ouvir a ladainha completa, que começavam sempre com “podia auxiliar-me, uma moedinha por favor”, e o resto era fuga para os transeuntes, inquietação para o homem, que insistia em explicar porque pedia ajuda.

Mas passada meia hora resumiu para: “auxilie por favor uma moeda, mulher inválida, eu desempregado.” Ninguém o ouviu.

Resumiu de novo: “auxilie uma moeda, mulher inválida.” Ninguém o ouviu.

Resumiu mais: “auxilie uma moeda.” Ninguém o ouviu.

Se é visível o momento em que se quebra um homem não sei. Mas este pareceu-me fissurado. Depois de tirar os óculos, depois de os guardar na pochete e depois de esconder os bordados num saco - muito depois, pareceu-me -, resumiu intensamente: “Uma moeda, uma moeda, uma moeda!”

A princípio, a voz não se lhe moldou à síntese. O homem resistia a resumir-se. Imagino que não soubesse onde meter a operação da mulher que a deixara por curar, onde pôr o desemprego longuíssimo, onde guardar um filho que havia meses não aparecia.

Mas gente aproximava-se e agora gente ouvia. Foi quando o homem berrou com voz de epílogo: “Moeda! Moeda! Moeda!”, e uma senhora - não se lhe via nenhuma fractura - lhe estendeu uma nota de cinco euros. “Moeda, moeda, moeda!”, continuava ele. Davam-lhe dinheiro e fugiam, davam-lhe dinheiro e pediam silêncio.

Mas ele não se calava, ele agarrava-se ao resumo da sua história como se apenas este o pudesse salvar. Entretanto tive de me ir embora e fiquei sem saber quanto tempo demora um homem a abandonar a sua própria síntese, ruindo por inteiro.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Podia auxiliar-me por favor - Afonso Reis Cabral
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Podia auxiliar-me por favor

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24.01.2024

O homem começou o pregão assim: “podia auxiliar-me, uma moedinha por favor, a minha mulher é inválida de uma operação, eu desempregado sem trabalhar, auxilie por favor.”

Tinha óculos embaciados, sapatos limpos mas com os atacadores gastos, em fios, e uma pochete cor-de-rosa onde guardaria a receita do negócio. Mas não havia negócio nem dinheiro.

Para o auxílio, vendia por cinco euros uns panos rendados pela mulher, que lhe telefonava a cada quinze minutos para perguntar se já vendera. “Está quase, é como te digo, está quase.”

Estava quase mas........

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