Quando o ano acaba, apontamos as resoluções como se fôssemos realmente cumpri-las. O eu que se avizinha - que pede para ser alimentado com beleza e encantamento - encontra-se à porta; parece que basta um gesto para o acolher.

A inscrição habitual num ginásio, e o propósito de perder vinte e cinco quilos e trezentas e trinta e três gramas, não são apenas para que o novo eu consiga passar pela porta. Mesmo na boa forma física, ambicionamos para o ano seguinte um ideal, e entregamo-nos inteiros à ilusão de que o eu próximo será melhor do que o eu de ainda agora.

Porém, como o eu próximo depende da ambição do eu estafado, que já só deseja aguentar até ao fim do ano, demasiadas vezes basta-se na imaginação pífia de propósitos como os do ginásio.

Não seria muito melhor o velho eu imaginar em condições o novo eu? Imaginá-lo tão perfeito quanto possível. Mesmo sabendo que falhará até ao último propósito, querê-lo tão perfeito que, no ano seguinte, nada menos do que coros de louvor e glória o acompanhem?

Como na música dos Fire Inc., se é para chegar a sítio nenhum, mais vale fazê-lo rapidamente e em força. Agora que o eu finito pensa no eu infinito que está para chegar, ele que lhe faça uma prece completa, ele que peça com sofreguidão.

Eis uma prece de Ano Novo para falhar ambiciosamente.

Que nestes trezentos e sessenta e cinco dias eu não seja indiferente: há tanto para ver, tanto para fazer.

Que eu encontre alegria nas coisas pequenas e felicidade nas grandes.

Que a cada dia eu escolha a paz à guerra, mesmo a paz pequenina do trânsito, do condomínio e das redes sociais.

Que semana a semana eu seja curioso, interessando-me sempre, porque há muito por descobrir e aprender.

Que a cada trimestre seja mais alegre do que sério, mais sério do que leviano, e pouco carrancudo.

Que, pelo meio do ano, tenha feito mais bem do que mal, auxiliado mais do que abandonado.

Que a inteligência nunca se sobreponha à bondade, e que seja em prol dos mais próximos e dos que aproximarei.

Que ninguém me trate da saúde, e que a saúde seja mais do que a saudinha.

Que o trabalho canse, mas não martirize.

Que haja dinheiro suficiente, e também algum pilim.

Que o amor cresça, e com ele a paixão e o excesso e as melices belas de quem se ama.

Que até trinta e um do último mês eu tenha feito essa coisa grande e exigente que é viver.

E que, passado do Natal, tenha o propósito de repetir estes falhanços no ano seguinte.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Prece do Ano Novo - Afonso Reis Cabral
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Prece do Ano Novo

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27.12.2023

Quando o ano acaba, apontamos as resoluções como se fôssemos realmente cumpri-las. O eu que se avizinha - que pede para ser alimentado com beleza e encantamento - encontra-se à porta; parece que basta um gesto para o acolher.

A inscrição habitual num ginásio, e o propósito de perder vinte e cinco quilos e trezentas e trinta e três gramas, não são apenas para que o novo eu consiga passar pela porta. Mesmo na boa forma física, ambicionamos para o ano seguinte um ideal, e entregamo-nos inteiros à ilusão de que o eu próximo será melhor do que o eu de ainda agora.

Porém, como o eu próximo depende da ambição do eu estafado, que........

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