De súbito parecemos surpreendidos com a votação no Chega, embora fosse um mal anunciado - nisso, as sondagens não falharam, e não falhou a percepção de quem tem os olhos abertos e fala com uma ou duas pessoas. Agora, há quem tente tirar as medidas ao votante do Chega como se um milhão e cem mil votantes tivessem todos a mesma cara.

Nalguns casos, sobretudo em quem se quer mostrar politicamente virtuoso, isto resulta num monstro de Frankenstein, um corpo feito de partes diferentes e discordantes, infectado com múltiplos venenos como o fascismo, o racismo, a xenofobia, a homofobia e demais extremismos, e trazido à vida pela electricidade made in Ventura.

Recolhi algumas imagens do monstro e deu nisto: são chalupas em maioria, saudosos reaccionários outros, alguns viúvos do senhor doutor Salazar, fascistas certamente, muitos dos quais especificamente fachos, às tantas todos homens, e decerto machistas; e essencialmente gente limitada que não pensa como gente sã.

Perante este monstro, há quem, nas redes sociais, diga que se demite de ser português. Os mais radicais radicalizam: anunciam renunciar às férias no Algarve, preferindo Bragança, onde não correm o risco de que os votantes do Chega lhes mordam. E há quem faça o desfile dos puros vs. os impuros. Puros nós, os que não votámos no Chega; impuros eles, os que votaram. Os puríssimos nem sequer conhecem quem tenha votado em Ventura, embora tal seja matematicamente impossível.

Evidentemente, André Ventura e o Chega são reaccionários, xenófobos, racistas e tudo o mais, sem esquecer uma boa dose de chalupice e de sem-vergonha, além do puro oportunismo político.

Contudo, embora alguns votantes correspondam de facto ao espelho exacto dos dislates apregoadas pelo líder, nem todos partilham da cartilha. Muitos, talvez a maioria, cabem no grande âmbito dos descontentes em relação ao funcionamento das instituições públicas, à percepção da corrupção (tantas vezes empolada), ao estado do SNS, à crise da habitação (onde se incluem a vergonha das taxas de juro e dos lucros desmesurados dos bancos), à pobreza mascarada nas cercanias dos grandes centros urbanos; enfim, a maioria, cansada do bipartidarismo, canaliza preocupações atendíveis e racionais para uma resposta não atendível e irracional. Muitos outros não partilham de qualquer cartilha, parecem-me despolitizados que o populismo espalhafatoso de Ventura arrancou à abstenção.

A distância que precisamos de manter à volta de Ventura não se estende aos seus votantes, que urge reconquistar para alternativas verdadeiramente viáveis e democráticas, sem o ónus do ostracismo. E sem transformarmos o votador na coisa votada.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Sem transformarmos o votador na coisa votada - Afonso Reis Cabral
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Sem transformarmos o votador na coisa votada

5 15
13.03.2024

De súbito parecemos surpreendidos com a votação no Chega, embora fosse um mal anunciado - nisso, as sondagens não falharam, e não falhou a percepção de quem tem os olhos abertos e fala com uma ou duas pessoas. Agora, há quem tente tirar as medidas ao votante do Chega como se um milhão e cem mil votantes tivessem todos a mesma cara.

Nalguns casos, sobretudo em quem se quer mostrar politicamente virtuoso, isto resulta num monstro de Frankenstein, um corpo feito de partes diferentes e discordantes, infectado com múltiplos venenos como o fascismo, o racismo, a xenofobia, a homofobia e demais extremismos, e trazido à vida pela electricidade made in Ventura.

Recolhi algumas........

© Jornal de Notícias


Get it on Google Play