Ia escrever sobre o concurso da andorinha porque o meu pai me telefonou em contentamento: tinha acabado de ver a primeira andorinha deste ano. Vivendo ele no Porto e eu em Lisboa, as primeiras andorinhas chegaram cá antes, mas eu não as vi. Passaram e eu deixei que o meu pai ganhasse o concurso.

Mas uma crónica sobre olhar para o céu e competir com o meu pai é assunto demasiado importante para quem está sem forças de escrita. Escrevo-a depois, quando metade do país tiver percebido, por fim, que as andorinhas já voam por aí.

Mais vale consultar o meu caderno de ideias, documento a que recorro quando, desinspirado, fujo aos assuntos importantes e urgentes, como as eleições, os debates e os apocalipses portugueses. Seria altura para a série “Querido asteróide”, as cartas que ainda hei-de escrever a um asteróide que caminha para a Terra. Queixar-me-ei da vida portuguesa, do Ventura e demais infortúnios, acabando por me despedir assim do querido asteróide: por favor, vem depressa.

Por enquanto, percorro o caderno em busca de outro tema. Algures, pensei inventar um sermão ao Bugs Bunny, pensei também na solidão de uma máscara de covid descartada e esquecida; sabe-se lá porquê, apontei que “talento” é uma palavra menos ofensiva para “dom”, que a normalidade é uma questão da estatística, e que, um dia, cronicaria as notícias superficiais e estúpidas sobre celebridades.

Mas nem agora, que acompanhamos a vida de Taylor Swift como num Truman Show, me ocorre o melhor ângulo, ainda que Taylor Swift se tenha tornado numa mulher perfeitamente ficcional e cronicável: metade dela é mito, a outra metade vontade de mitificar.

Noutro apontamento do caderno, sugiro escrever sobre “plenos poderes vocabulares”, algo que eu bem queria ter, já que estou encaminhado no meu próximo romance - mas não nesta crónica.

Noutro ainda, digo: “quero ser macaco”, o que suponho tratar-se duma ideia. Mas então lembro-me de que fui macaco numa crónica já publicada em que falei da teoria do macaco infinito.

“Sempre que pressiono o botão de um semáforo”, aponto mais abaixo, “recordo o rapaz morto. É como se a ponta dos nossos dedos se tocasse, eu do lado de cá, ele do lado de lá. Atravessada a passadeira, ainda olho para trás, a ver se há novidade, mas invariavelmente ele não atravessa comigo.” Seria o começo de uma crónica séria sobre o luto por quem não conheci. Mas agora acaba-se-me o espaço.

Resta-me a receita da sopa de pedra, que refiro na terceira página do caderno de ideias: tal como na lenda do frade manhoso que pediu ao lavrador uma sopa só com água e pedra, propus-me ir acrescentando à pedra do texto mais qualquer coisinha.

No fim, dá uma sopa. No fim, dá uma crónica. Mas eu não sou frade nem sou manhoso - e, por este caminho, não sou sequer cronista.

QOSHE - Sopa de pedra - Afonso Reis Cabral
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Sopa de pedra

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14.02.2024

Ia escrever sobre o concurso da andorinha porque o meu pai me telefonou em contentamento: tinha acabado de ver a primeira andorinha deste ano. Vivendo ele no Porto e eu em Lisboa, as primeiras andorinhas chegaram cá antes, mas eu não as vi. Passaram e eu deixei que o meu pai ganhasse o concurso.

Mas uma crónica sobre olhar para o céu e competir com o meu pai é assunto demasiado importante para quem está sem forças de escrita. Escrevo-a depois, quando metade do país tiver percebido, por fim, que as andorinhas já voam por aí.

Mais vale consultar o meu caderno de ideias, documento a que recorro quando, desinspirado, fujo aos assuntos importantes e urgentes, como as eleições, os debates e os........

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