Os discursos do fim do mundo sugiram no início do mundo. Logo depois do Big Bang, quando a massa de que também somos feitos se expandia numa fricção de fogo e de esperança, imagino que já houvesse alguém a dizer: isto não vai correr bem.

E tinha razão. Em último caso, nada disto corre bem, seja pela nossa pequena decrepitude, seja pela grande decrepitude do universo, que dia-não-dia está para acabar. Até lá, as coisas vão correndo bem o suficiente para evitarmos o apocalipse e as distopias, mas por vezes conseguimos identificar eventos que podem mudar a humanidade. E um desses momentos ocorreu por estes dias.

Já sabemos que a IA veio, e há-de ser cada vez mais determinante. Quanto a isso, por muita legislação que se imponha (e é essencial que o façamos), a caixa de Pandora foi aberta e não há força que a feche. Até agora, tínhamos a sedução do Chat GPT e a produção de imagens a partir de texto. São ferramentas extraordinárias com implicações imprevisíveis, mas não chegam aos pés da nova criação da Open AI.

“A nova criação da Open AI” soa a início de filme de ficção científica em que uma forma de não-vida dominou o mundo. E, na verdade, não estamos longe de entregar a nossa vida à não-vida chamada Sora.

Trata-se de um modelo de IA criado pela Open AI que produz vídeos a partir de “prompts”, meras instruções de texto que qualquer pessoa pode escrever. Dizem eles: “estamos a ensinar a inteligência artificial a entender e simular o mundo físico em movimento, com o objectivo de treinar modelos que ajudem as pessoas a resolver problemas que exigem interacção no mundo real”.

Digo eu: os vídeos que divulgaram são revolucionários. Absolutamente encantatórios. Embora, sobretudo na motricidade humana, consigamos identificar pequenos defeitos e inconformidades (chamados “alucinações”), os vídeos são mais do que credíveis. São mais perfeitos do que a realidade. Diria que são sobre-reais.

A tecnologia ainda tem limitações, mas será ilimitada. Há um ano, circulava um vídeo de Will Smith a comer esparguete produzido com o modelo precursor deste novo. Era uma aberração. O crescimento exponencial da tecnologia, em si mesmo uma espécie de Big Bang, permitiu que um ano depois equivalha a séculos depois. Os novos vídeos são mágicos, se entendermos o termo magia de acordo com Isaac Azimov, que dizia que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.

Filmagens da Califórnia em plena corrida ao ouro, um astronauta plenamente humano com um capacete forrado com um barrete de croché, uma falésia batida pelas ondas, etc. Tudo isto Sora fez em vídeo a partir de meras descrições de texto.

Estamos, pois, perante um tipo de fim de mundo. Certamente o fim do espaço público como o conhecemos. As implicações para a percepção do real, para a desinformação, para a política, para a arte, enfim, as implicações para a nossa psique colectiva são tremendas. Sora governará o mundo.

o autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Sora, imperador do mundo - Afonso Reis Cabral
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Sora, imperador do mundo

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06.03.2024

Os discursos do fim do mundo sugiram no início do mundo. Logo depois do Big Bang, quando a massa de que também somos feitos se expandia numa fricção de fogo e de esperança, imagino que já houvesse alguém a dizer: isto não vai correr bem.

E tinha razão. Em último caso, nada disto corre bem, seja pela nossa pequena decrepitude, seja pela grande decrepitude do universo, que dia-não-dia está para acabar. Até lá, as coisas vão correndo bem o suficiente para evitarmos o apocalipse e as distopias, mas por vezes conseguimos identificar eventos que podem mudar a humanidade. E um desses momentos ocorreu por estes dias.

Já sabemos que a IA veio, e há-de ser cada vez mais determinante. Quanto a isso, por muita legislação que se imponha (e é essencial que........

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