O filme “Dune”, agora nos cinemas, bem podia ser excelente, que pesaria sobre ele, sempre, o fantasma de Alejandro Jodorowsky. Sendo um filme desenxabido, além de enfadonho, o palimpsesto do “Dune” que Jodorowsky nunca chegou a realizar vem demasiado ao de cima. Mesmo, suponho, para quem não saiba que a hipótese de um outro “Dune” - esqueçam o de Linch - tenha existido.

Em 1974, depois de dois filmes experimentais que marcaram a contracultura da época, Alejandro Jodorowsky, realizador e artista e visionário e tantos outros apodos, propôs-se adaptar a obra de Frank Herbert. Obra que nunca tinha lido; mas que, em defesa de Jodorowsky, toda a gente lera sem ter lido -, “Dune” foi adoptado pela cultura em que imperava a ideia mais ou menos plástica de enriquecer a mente e abrir as portas ao entendimento.

O documentário de Frank Pavich explica: com o seu “Dune”, visão descomunal de umas catorze horas de filme, Jodorowsky queria transmitir ao espectador a sensação de uma trip de alucinogénios. A expansividade do entendimento que a especiaria minerada no planeta Duna permitia no livro, queria-a Jodorowsky dar ao espectador no filme. Claro que a coisa estava condenada à partida.

Mas a verdadeira especiaria é o próprio Alejandro Jodorowsky. No documentário de 2013 já é velho. Porém, não há nele uma sombra de velhice: todo ele vibra com a ideia grandiosa que lhe ocupou a mente nos anos em que tentou levar “Dune” a cabo.

Fala-nos de como obrigou o seu filho de doze anos a uma rígida disciplina física em artes marciais, para poder vir a interpretar Paul Atreides. Diz-nos como perseguiu os profissionais mais promissores da época, muitos dos quais, mais tarde, participaram em filmes icónicos. E explica-nos como namorou Dalí, que queria para o papel de Imperador.

Dalí era um gigante de egotismo, uma hipérbole dele mesmo. Espanta-me que sobrasse espaço em si para a pintura, a não ser que as telas fossem território para a expansão do seu ego. Como ritual de passagem, contou a Jodorowsky que, quando ia à praia com Picasso, invariavelmente encontrava um relógio na areia. “E a ti, acontece-te o mesmo?” Atrapalhado, Jodorowsky respondeu-lhe que não: pelo contrário, perdia sempre um. Face a isto, Dalí concordou em fazer de Imperador, desde que lhe dessem o maior cachê da história de Hollywood e uma girafa em chamas.

Em chamas continua a mente de Jodorowsky ao descrever o filme gorado. O entusiasmo juvenil e maníaco, pronto a engolir o Mundo, lembra o de “Zorba, o Grego”. Ambos extravasam, preenchem todos os cantos da existência com uma desadequação invejável e assustadora.

O exemplo de Jodorowsky contraria a timidez de certos artistas. Depois de o ouvirmos, depois de ele nos dizer que se lixe não ter conseguido - seja como for, a sua ambição seria demasiado grande para a realidade -, sentimo-nos prontos para sermos derrotados. Um pouco mais de Jodorowsky em nós, os tímidos artistas, e a derrota seria a mais bela.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Um pouco mais de Jodorowsky - Afonso Reis Cabral
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Um pouco mais de Jodorowsky

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20.03.2024

O filme “Dune”, agora nos cinemas, bem podia ser excelente, que pesaria sobre ele, sempre, o fantasma de Alejandro Jodorowsky. Sendo um filme desenxabido, além de enfadonho, o palimpsesto do “Dune” que Jodorowsky nunca chegou a realizar vem demasiado ao de cima. Mesmo, suponho, para quem não saiba que a hipótese de um outro “Dune” - esqueçam o de Linch - tenha existido.

Em 1974, depois de dois filmes experimentais que marcaram a contracultura da época, Alejandro Jodorowsky, realizador e artista e visionário e tantos outros apodos, propôs-se adaptar a obra de Frank Herbert. Obra que nunca tinha lido; mas que, em defesa de Jodorowsky, toda a gente lera sem ter lido -, “Dune” foi adoptado pela cultura em que imperava a ideia mais ou menos........

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