Pouco percebo de carros excepto guiá-los, muito menos percebo de tuning. Também não percebo muito de cinema português, embora saiba reconhecer uma coisa boa. Aliar estes dois desconhecimentos talvez não dê a melhor crónica, mas o filme “Via Norte”, do realizador Paulo Carneiro, bem merece a tentativa.

Primeiro, a ousadia da premissa: “Via Norte” é um filme sobre tuning que não é um filme sobre tuning. Depois, a ousadia da execução: um dia, o realizador parte num Toyota Celica de 92 para o Norte da Europa, onde entrevista donos de carros modificados. São amadores no sentido mais puro - de dia estafam-se por necessidade no trabalho, de noite estafam-se nos carros por amor.

Paulo Carneiro, que é um artista sensível na hora de entrevistar, conversa com vários emigrantes de primeira e segunda geração. Enquadra-os junto dos carros em garagens, bombas de gasolina, parques de estacionamento. Sempre de noite.

Aqui começa a desfazer-se um dos primeiros preconceitos, o do emigrante perfeitamente esbanjado num carro de alta cilindrada que pretende mostrar sucesso aos nacionais. Os entrevistados são mais do que isso, e o realizador sabe puxar por eles.

Por norma homens, todos falam com uma certa inocência dos seus carros. Aparentemente como quem gaba a beleza de um filho feio. Mas achar feio aquele tipo de carros era um preconceito meu que não sobrevive ao filme. A candura com que descrevem carro e vida é uma porta inteiramente aberta para realidade para mim distante. A do sentido de pertença de quem está dividido ente uma e outra terra.

E mais do que isso: vemos neles o refúgio num núcleo que primeiro é a comunidade portuguesa, depois a família, depois a comunidade do tuning. Especialmente os de segunda geração, espanta que continuem a falar um português quase não adulterado, e que tenham saudades de Portugal, melhor, saudades de um país de férias onde vão desenterrar as raízes.

Depois há algo de poético no filme. E a poesia é a maneira de ver: o dono de um Ford Focus ST, pintado horrivelmente a cores de Fanta, diz que gosta do carro mas não tanto como de uma pessoa, embora o carro, “como dizer, gosto mesmo dele. Tudo o que é Fanta fui eu”. Um dia, espera que o filho pense como ele, faça como ele, ame como ele: o carro “dorme numa garagem, só sai no Verão, e lavo-o três vezes por semana”.

Os carros modificados são, eles mesmos, personagens dignas de boa ficção, como se fossem almas de metal. Neles recai uma dedicação tal, que mais parecem uma biblioteca. Observando-os, conhecemos um pouco de quem os fez. Gente que sofreu nas costas as dificuldades da emigração, perdida entre línguas; pessoas cuja identidade, complexa e interessante, muitas vezes não cabe no país onde vivem. Pessoas que vivem entre a esperança e a xenofobia.

Paulo Carneiro não passa por isto sem humor nos planos, nas sequências, nas analogias. Por vezes, até tira coelhos da cartola. E o final vertiginoso parece dizer: “Gostaram, não foi? Para a próxima há mais”.

*O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Via Norte - Afonso Reis Cabral
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Via Norte

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17.01.2024

Pouco percebo de carros excepto guiá-los, muito menos percebo de tuning. Também não percebo muito de cinema português, embora saiba reconhecer uma coisa boa. Aliar estes dois desconhecimentos talvez não dê a melhor crónica, mas o filme “Via Norte”, do realizador Paulo Carneiro, bem merece a tentativa.

Primeiro, a ousadia da premissa: “Via Norte” é um filme sobre tuning que não é um filme sobre tuning. Depois, a ousadia da execução: um dia, o realizador parte num Toyota Celica de 92 para o Norte da Europa, onde entrevista donos de carros modificados. São amadores no sentido mais puro - de dia estafam-se por necessidade no trabalho, de noite estafam-se nos carros por amor.

Paulo Carneiro, que é um artista sensível na hora de entrevistar, conversa........

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