Isto da crise deixa-me confuso porque nos mexeram no vocabulário. Já não basta estarmos com o ânimo em bicos dos pés, aflitos com a jornada daqui até 10 de Março, ficámos também com as palavras desordenadas. A mim acontece-me não saber exactamente como usá-las, e baralho tudo.

Amigo passou a ser uma condição temporária dependente da percepção pública, extinguindo-se quando problemática para uma das partes, a mais forte; mas até agora amigo, sobretudo o melhor, queria dizer representante informal. Isto confunde, tanto mais que, antigamente, amigo era só amigo, ou seja, cinquenta por cento de uma relação de companheirismo baseada no mútuo apreço e em pé de igualdade.

Pior é que a crise deixou de significar conjuntura difícil - agora significa oportunidade. E caos, uma grande soma de crises, passou a catrefada de oportunidades.

Trata-se de uma chance, por exemplo, para o termo candidato. De acordo com certa facção, candidato é sinónimo de homem predestinado (o que, em si mesmo, nada significa, visto que predestinado foram tantos, de Churchill a Estaline); para outra facção, significa homem fiável, de pontes. Pelo meio, subsidiariamente, quer dizer bonito e impetuoso, mas também sensato e moderado, conforme o que dite o Twitter, que já nem Twitter se chama.

O macro também sofre. É certo que ainda não mexeram nas palavras maiores, como cosmo e universo, mas foram direitinhos ao filho destes - cronos. Falou-se muito do tempo do presidente, do tempo da justiça e do tempo eleitoral. Se repararem, em nenhum destes casos o tempo é tempo. Quer sobretudo significar decisão, e esta nunca sem tempero. Apõem-se-lhe adjectivos como questionável, precipitada, lamentável, acertada e outros que tais, ficando pronta a servir. Num país acusado desde Alcácer-Quibir de falta de decisão, é ousadia - e agora estamos no tempo de todas as decisões, algo como o tempo de todos os tempos, o que dá nós na cabeça.

Até as palavras pequenas mudaram. Os livros já não são livros. Passaram a esconderijo. Isto inflacionou muito o valor da antiga palavra, agora recheada e importante. Por maioria de razão, se livro quer dizer esconderijo, chefe de gabinete é agora bibliotecário. Se mexem nas palavras, eu também posso.

Mas confundiu-me quando o primeiro-ministro, instalada uma enorme oportunidade, exonerou um bibliotecário por ter dado valor aos livros. E surpreso fiquei quando demitiu alguém do cargo de amigo, mas manteve como ministro outro alguém cheio de inimizades.

Enfim, dizem que tudo passa. E eu acredito, até nisto de tirarmos as palavras do sítio. Contudo, não antes de Março: até lá, o eleitor tem de desenrascar uma solução governativa - mas o que isso significa nem no dicionário me atrevo a procurar.

QOSHE - Vocabulário da crise política - Afonso Reis Cabral
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Vocabulário da crise política

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22.11.2023

Isto da crise deixa-me confuso porque nos mexeram no vocabulário. Já não basta estarmos com o ânimo em bicos dos pés, aflitos com a jornada daqui até 10 de Março, ficámos também com as palavras desordenadas. A mim acontece-me não saber exactamente como usá-las, e baralho tudo.

Amigo passou a ser uma condição temporária dependente da percepção pública, extinguindo-se quando problemática para uma das partes, a mais forte; mas até agora amigo, sobretudo o melhor, queria dizer representante informal. Isto confunde, tanto mais que, antigamente, amigo era só amigo, ou seja, cinquenta por cento de uma relação de companheirismo baseada no mútuo apreço e em pé de........

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