A forma como construímos e ocupamos o nosso território reflete bem o modo como cumprimos o último meio século de história. Agora que comemoramos cinquenta anos sobre a revolução de abril de 1974 a existência de quase 2/3 dos municípios do continente classificados como áreas de baixa densidade não é, de certeza, um bom cartão de visita. Os territórios são espaços construídos, espacialidades inscritas no movimento perpétuo de desconstrução e reconstrução. Como tal, os espaços construídos têm um tempo de vida útil, estão em constante movimento e em processo simultâneo de desterritorialização e reterritorialização. Em todos os casos, os espaços construídos são uma combinação variável de materiais tangíveis e intangíveis ou simbólicos, se quisermos, de valores de troca e valores de uso. Quanto às novas territorialidades, elas são, essencialmente, uma promessa de futuro, um propósito e uma combinação variável e polissémica de materiais, recursos, valores, significados, funcionalidades e identidades que podem, finalmente, através de uma territorialidade dominante, materializar-se num determinado lugar.

Enquanto espaços construídos, os territórios têm, todos, uma historicidade singular feita de múltiplas territorialidades, umas reais, outras imaginárias, umas hegemónicas outras subordinadas. Enquanto espaço construído o território é um campo de forças e um espaço de conflito potencial entre diversas jurisdições e representações.

Hoje, falar de territorialidades é falar do princípio da mobilidade e dos seus dois corolários lógicos, a multiterritorialidade e a territorialização múltipla. De algum modo, todos nós já vivemos esta multiterritorialidade na forma dupla de mobilidade física e de mobilidade virtual. Com efeito, esta dupla mobilidade e esta dupla vivência conduzem-nos à criação de territórios-rede de geometria muito variável. Nas palavras de Ulrich Beck vivemos uma espécie de topoligamia, isto é, estamos casados com vários lugares, logo vivemos em multiterritorialidade e em territorialização múltipla.

Estas considerações são fundamentais para perceber como, por exemplo, as nossas áreas de baixa densidade (ABD) podem ser espaços virtuosos de múltiplas territorialidades e territorializações, desde que tenhamos inteligência coletiva suficiente para criar neles múltiplos espaços de significação e intervenção. O que acontece, no nosso caso, é que nos falta inteligência coletiva e autorreferenciação territorial suficientes para

produzir espaços contraditórios e pertinentes de significado que nos forneçam alternativas relevantes e opções realistas para prosseguir à nossa escolha, em vez de aceitarmos, quase sempre como boas e definitivas, a retórica programática habitual e as imagens estereotipadas do discurso oficial das autoridades nacionais em redor das sucessivas gerações de programas europeus de incentivos.

Infelizmente, não conseguimos ainda pensar multiterritorialmente. Sabemos que a baixa densidade de uma boa parte do território continental português é um problema de tecnologia política de longa data, isto é, de ordenamento do território. Sabemos que, nos tempos que correm, esta baixa densidade poderia ser compensada por uma base informacional mais densa e por uma economia simbólico-cultural mais eficaz e efetiva. Sabemos que a imagem autorreferencial de um território é sempre uma construção histórico-social e que os territórios plurais são sempre capazes de produzir várias imagens reflexivas de si próprio. Sabemos que uma boa parte do futuro nos poderá chegar por via da economia do imaginário e da sua irreverência. Sabendo tudo isto, não fomos ainda capazes, para os nossos territórios de baixa densidade, de adotar o princípio ativo das redes de cooperação e, assim, confecionar a fórmula milagrosa que nos traga a dose certa para novas e mais imaginativas territorialidades.

Infelizmente, nos anos mais recentes, e apesar dos fundos europeus, o processo de desterritorialização provocou lesões graves no tecido social dos nossos territórios, que perderam capacidades e competências para gerar multiterritorialidades e, portanto, novos horizontes de futuro. Os recursos e a diversidade continuam lá, em estado latente, mas não existe inteligência coletiva e pluralidade suficientes para gerar a instigação que é necessária à mobilização dos cidadãos e à transformação dos recursos em ativos do território. Sem estes horizontes mais alargados fica mais difícil gerar novas territorialidades e territórios-rede com futuro. Vejamos algumas causas deste processo de desterritorialização:

- A deslocalização empresarial motivada pela globalização comercial e financeira,

- Os custos de contexto excessivos motivados por políticas de austeridade severas, pesadas cargas fiscais e custos regulatórios elevados,

- O encerramento de serviços públicos, serviços bancários e seguros, por razões de racionalização das redes respetivas, gera deseconomias externas aos territórios,

- O excesso de zelo regulamentar (normalização, padronização, calibragem) deixa muitas micro e pequenas empresas no limbo entre a economia formal e informal,

- As áreas de baixa densidade vivem o círculo vicioso do despovoamento, os mercados são muito pequenos e o défice de procura estrangula todas as formas de negócio,

- As falhas de investigação e integração sobre a economia dos territórios-rede relega para plano secundário a agroecologia, as tecnologias intermédias, os saberes tradicionais e os recursos endógenos e torna praticamente inviáveis os sistemas produtivos locais,

- As falhas de articulação, estruturação, integração das relações cidade-campo são uma fonte de problemas nos territórios periurbanos e suburbanos das nossas cidades,

- À semelhança da pressão imobiliária urbana, também a especialização e intensificação provocam pressão fundiária, concentração da propriedade, erosão dos solos e abandono,

- A turistificação abusiva do território provoca uma sobrecarga desproporcionada sobre os recursos naturais e culturais do território e danifica irremediavelmente a sua estrutura de oportunidades e benefícios,

- As alterações climáticas e os riscos globais associados, por exemplo os fogos florestais, fragmentam os ecossistemas e os habitats, as comunidades e as populações, destruindo os seus territórios e quadros de vida; a falta de prioridade atribuída à economia dos ecossistemas e mosaicos paisagísticos relega para plano secundário a valorização dos serviços de ecossistema e os benefícios das paisagens globais.

Como dissemos no início, as novas territorializações são, essencialmente, uma promessa de futuro, isto é, uma combinação variável e polissémica de materiais, recursos, valores, significados, funcionalidades e identidades, que podem, finalmente, através de uma territorialidade dominante, materializar-se em concreto num determinado território ou região. Vejamos alguns fatores favoráveis ao processo de reterritorialização:

- O quadro europeu pode criar regras de condicionalidade positiva para promover as relocalizações empresariais e a reindustrialização no espaço do mercado único europeu,

- A cooperação transfronteiriça pode fazer convergir os custos de contexto e criar áreas de localização empresarial, por exemplo, nas euro-cidades e euro-regiões,

- Uma nova política de serviços públicos que troque, sempre que possível, o encerramento de serviços pela itinerância dos serviços, aumentando a sua polivalência, e em alguns casos sendo provisionados pela iniciativa particular via contratos com a administração,

- Adotar uma atitude pedagógica e criativa face à economia informal pode ajudá-la a progredir e a legalizar-se,

- Ajustar progressivamente a regulamentação existente ao hiper-realismo dos mercados locais, para evitar a passagem do sector formal para o informal,

- Promover um urbanismo responsável que crie espaços públicos na cidade e formas mais inovadoras e criativas de comércio tradicional,

- Promover a escola aberta e comunitária enquanto projeto educativo, artístico e cultural para os concelhos alarga os públicos disponíveis para outras atividades,

- Aproximar as universidades e os politécnicos das economias locais, ao serviço dos sistemas produtivos locais, pela criação de uma infraestrutura ecológica dos concelhos e de mosaicos paisagísticos apropriados,

- Reinventar o continuum cidade-campo, renaturalizando a cidade, por um lado, e abrindo novos espaços públicos no campo, por outro,

- Ordenar e regular o acesso ao território para evitar a sua sobrecarga e os danos sobre os seus recursos naturais e culturais causados por uma turistificação discricionária,

Enquanto estes movimentos de desterritorialização e reterritorialização acontecem há outros tantos exemplos de mobilidades e multiterritorialidades em construção. Vejamos alguns desses exemplos:

- Mobilidades de recreio e lazer, certas ou ocasionais, individuais ou em grupo, movimentos de turistificação cada vez mais intensos e uma economia residencial de 2ª e 3ª habitação,

- Mobilidades pendulares de proximidade transfronteiriça, um novo estatuto para o trabalhador transfronteiriço e a regulação dos movimentos mais sensíveis às necessidades quotidianas de bens e serviços pessoais,

- Mobilidades relativas a grandes eventos periódicos: peregrinações, bienais de artes e cultura, grandes eventos musicais, de moda e desportivos, entre outros, criam habituação e rotinas em certos destinos territoriais,

- Mobilidades de carácter científico e universitário: desde os programas de mobilidade de estudantes ao recrutamento de investigadores e professores e as residências científicas de suporte a projetos internacionais,

- Mobilidades virtuais ligadas ao teletrabalho, a novas formas de organização do trabalho e ao nomadismo digital em associação com novos espaços de coworking e incubadoras do movimento starting up,

- Mobilidades ligadas à diáspora, aos movimentos migratórios e ao acolhimento de refugiados de natureza muito variada traduzem-se em sociedades cada vez mais multiculturais,

- Mobilidades ligadas à dinâmica das redes sociais, à força dos laços fracos, e de uma maneira geral, às relações sociais virtuais estabelecidas na economia das plataformas e suas aplicações, onde também se incluem os ambientes virtuais e imersivos do metaverso,

- Mobilidades e multiterritorialidades no âmbito de acordos de cooperação bilateral e multilateral, por exemplo, a circulação de pessoas no quadro da CPLP,

- Mobilidades e multiterritorialidades ligadas aos acordos do clima, aos objetivos do desenvolvimento sustentável, ao pacto ecológico europeu, à proteção de áreas protegidas e às relações cidade-campo no âmbito da formação da 2ª ruralidade,

-Mobilidades e multiterritorialidades interinstitucionais associadas às redes de cidades património mundial da Unesco, de cidades criativas da Unesco, de capitais europeias da cultura da União Europeia, dos itinerários culturais do Conselho da Europa, entre outras.

Nota Final

Em Portugal os territórios estão em movimento acelerado, não apenas devido aos efeitos assimétricos acumulados das grandes transições, mas, sobretudo, por duas razões adicionais. A primeira é o declínio demográfico e o envelhecimento da população, a segunda é a saída para o estrangeiro dos jovens mais qualificados em busca de melhores empregos e remunerações. Estas duas razões são especialmente severas e somam-se à severidade das alterações climáticas e dos riscos globais com incidência especial nas áreas de baixa densidade do interior do país. Todos os setores da economia portuguesa são afetados pela falta de mão-de-obra e pelos baixos níveis de remuneração. Receio bem que a Grande Renúncia dos mais jovens neste contexto vá continuar. Sabemos que uma reforma estrutural desta relevância não se materializa a curto prazo, pelo que pode estar em causa uma parte substancial de todo o processo criativo ligado ao movimento dos territórios em transição. Cinquenta anos depois, somos ainda um país da coesão, uma espécie de capital de queixa que nos deixa um estranho amargo de boca!!

QOSHE - Áreas de baixa densidade, criatividade e multiterritorialidade - António Covas
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Áreas de baixa densidade, criatividade e multiterritorialidade

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18.04.2024

A forma como construímos e ocupamos o nosso território reflete bem o modo como cumprimos o último meio século de história. Agora que comemoramos cinquenta anos sobre a revolução de abril de 1974 a existência de quase 2/3 dos municípios do continente classificados como áreas de baixa densidade não é, de certeza, um bom cartão de visita. Os territórios são espaços construídos, espacialidades inscritas no movimento perpétuo de desconstrução e reconstrução. Como tal, os espaços construídos têm um tempo de vida útil, estão em constante movimento e em processo simultâneo de desterritorialização e reterritorialização. Em todos os casos, os espaços construídos são uma combinação variável de materiais tangíveis e intangíveis ou simbólicos, se quisermos, de valores de troca e valores de uso. Quanto às novas territorialidades, elas são, essencialmente, uma promessa de futuro, um propósito e uma combinação variável e polissémica de materiais, recursos, valores, significados, funcionalidades e identidades que podem, finalmente, através de uma territorialidade dominante, materializar-se num determinado lugar.

Enquanto espaços construídos, os territórios têm, todos, uma historicidade singular feita de múltiplas territorialidades, umas reais, outras imaginárias, umas hegemónicas outras subordinadas. Enquanto espaço construído o território é um campo de forças e um espaço de conflito potencial entre diversas jurisdições e representações.

Hoje, falar de territorialidades é falar do princípio da mobilidade e dos seus dois corolários lógicos, a multiterritorialidade e a territorialização múltipla. De algum modo, todos nós já vivemos esta multiterritorialidade na forma dupla de mobilidade física e de mobilidade virtual. Com efeito, esta dupla mobilidade e esta dupla vivência conduzem-nos à criação de territórios-rede de geometria muito variável. Nas palavras de Ulrich Beck vivemos uma espécie de topoligamia, isto é, estamos casados com vários lugares, logo vivemos em multiterritorialidade e em territorialização múltipla.

Estas considerações são fundamentais para perceber como, por exemplo, as nossas áreas de baixa densidade (ABD) podem ser espaços virtuosos de múltiplas territorialidades e territorializações, desde que tenhamos inteligência coletiva suficiente para criar neles múltiplos espaços de significação e intervenção. O que acontece, no nosso caso, é que nos falta inteligência coletiva e autorreferenciação territorial suficientes para

produzir espaços contraditórios e pertinentes de significado que nos forneçam alternativas relevantes e opções realistas para prosseguir à nossa escolha, em vez de aceitarmos, quase sempre como boas e definitivas, a retórica programática habitual e as imagens estereotipadas do discurso oficial das autoridades nacionais em redor das sucessivas gerações de programas europeus de incentivos.

Infelizmente, não conseguimos ainda pensar multiterritorialmente. Sabemos que a baixa densidade de uma boa parte do território continental português é um........

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