Dois factos recentes servem de pretexto para esta breve incursão pela Europa das regiões e municípios. O primeiro diz respeito ao relatório produzido pelo grupo de trabalho sobre a política de coesão pós-2027 criado pela comissária europeia Elisa Ferreira*. O segundo diz respeito à 10ª cimeira europeia de regiões e municípios realizada na cidade belga de Mons nos passados dias de 18 e 19 de março e que teve como resultado a Declaração de Mons. Da leitura destes dois documentos retiro dez fatores críticos para o futuro da Europa das regiões e municípios no período pós-2027:

1. As assimetrias regionais e as desigualdades sociais fazem crescer o euroceticismo europeu: elas polarizam o sistema político-partidário europeu e contaminam a composição política das instituições; as expetativas e as dúvidas já criadas em redor das próximas eleições para o Parlamento Europeu são um sinal significativo do que pode acontecer a breve prazo.

2. A armadilha do desenvolvimento deve ser acautelada: não devemos privilegiar a despesa pública de redistribuição e compensação nas regiões menos desenvolvidas e relegar para plano secundário o dinamismo das regiões mais desenvolvidas, sob pena de se perder irremediavelmente o efeito de arrastamento das regiões mais desenvolvidas sobre as menos desenvolvidas.

3. A intensidade-rede e a interoperabilidade entre regiões e municípios: os investimentos em economias de rede e aglomeração levados a efeito pela cooperação inter-regional, intermunicipal e transfronteiriça devem ser sempre privilegiados pela política de coesão, mas, também, devidamente monitorizados e avaliados.

4. A qualidade do ambiente institucional e do capital social é fundamental: a interação permanente entre ambiente institucional e capital social determina a qualidade das inter-relações entre os mercados, as redes e os comportamentos; estes só adquirem toda a sua projeção pública e política se passarem pela boa intermediação das normas e regras das instituições cuja estabilidade e previsibilidade dependem diretamente da qualidade daquela interação.

5. A boa utilização das tecnologias emergentes: sem uma adequada literacia tecno-digital de todos os cidadãos não haverá uma utilização eficiente da infraestrutura digital e das plataformas digitais à nossa disposição, ou seja, a relação virtuosa entre comunidades online e comunidades offline ficará seriamente posta em causa.

6. A condicionalidade orçamental não deve sacrificar a coesão territorial: as novas regras de condicionalidade em matéria de défice e dívida pública não devem conduzir ao stop and go orçamental e à descontinuação da política de coesão sob pena de deitar a perder todo o esforço de investimento feito até aí pela cooperação territorial descentralizada.

7. A criatividade e a inovação ocupam um lugar central na abordagem ao potencial de desenvolvimento de regiões e municípios: a economia criativa encontra soluções locais e regionais para os problemas globais, por isso, deve ser promovido o acesso direto das regiões e municípios aos fundos europeus e a medidas suficientemente diferenciadas para acolher as soluções propostas.

8. A boa governança multiníveis exige uma legitimidade política efetiva de todos os níveis de governo e administração em presença: as políticas regionais e locais não são um subproduto das políticas públicas europeias, ao contrário, são estas que oferecem abertura suficiente para ajustar-se ao potencial de desenvolvimento de cada região e assim reconhecer a legitimidade política que assiste às diferentes comunidades.

9. O papel do comité das regiões na estrutura político-institucional da União deve ser reapreciado e valorizado: numa conjuntura em que a geopolítica europeia se prepara para a reindustrialização de uma economia da guerra fria e um novo alargamento ao leste europeu, a criação de um pilar da política de coesão pós-2027 especificamente para as regiões e municípios europeus e a cooperação territorial descentralizada pode ser um fator fundamental de estabilidade política e confiança acrescida nas instituições europeias.

10. A subsidiariedade proativa na consolidação da democracia europeia: se os bens comuns e globais europeus fazem apelo a uma subsidiariedade ascendente em direção às atribuições e competências das instituições europeias, a cidadania ativa, os bens comuns colaborativos e a qualidade do espaço público comunitário apelam a uma subsidiariedade descendente em nome da descentralização política e social e de uma Europa das regiões e municípios, ou seja, de uma genuína sociedade colaborativa.

Nota Final

Precisamos urgentemente de um novo pensamento político para evitar o risco de disrupção entre o ator e o sistema e a implosão das dimensões espaço-tempo que estão na base da economia das regiões e das comunidades municipais. A Europa das regiões e dos municípios, devido à sua geografia sentimental e empatia territorial, pode ajudar-nos a mitigar a crise da alteridade, a crise da urgência, a prevalência da instantaneidade. Num ambiente geoeconómico e geopolítico muito indeterminado, a política de coesão pós-2027 representa, em certo sentido, a última salvaguarda dos nossos valores democráticos mais essenciais e a defesa da arte da nossa existência nos lugares que escolhemos para viver o nosso quotidiano. A Europa das regiões e dos municípios é nossa. Saibamos preservá-la e promovê-la.

*A este propósito, ler o Jornal de Negócios de 22 de março último.

QOSHE - A Europa das regiões e municípios - António Covas
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A Europa das regiões e municípios

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05.04.2024

Dois factos recentes servem de pretexto para esta breve incursão pela Europa das regiões e municípios. O primeiro diz respeito ao relatório produzido pelo grupo de trabalho sobre a política de coesão pós-2027 criado pela comissária europeia Elisa Ferreira*. O segundo diz respeito à 10ª cimeira europeia de regiões e municípios realizada na cidade belga de Mons nos passados dias de 18 e 19 de março e que teve como resultado a Declaração de Mons. Da leitura destes dois documentos retiro dez fatores críticos para o futuro da Europa das regiões e municípios no período pós-2027:

1. As assimetrias regionais e as desigualdades sociais fazem crescer o euroceticismo europeu: elas polarizam o sistema político-partidário europeu e contaminam a composição política das instituições; as expetativas e as dúvidas já criadas em redor das próximas eleições para o Parlamento Europeu são um sinal significativo do que pode acontecer a breve prazo.

2. A armadilha do desenvolvimento deve ser acautelada: não devemos privilegiar a despesa pública de redistribuição e compensação nas regiões menos desenvolvidas e relegar para plano secundário o dinamismo das regiões mais desenvolvidas, sob pena de se perder irremediavelmente o efeito de arrastamento das regiões mais desenvolvidas sobre as menos desenvolvidas.

3. A intensidade-rede e a interoperabilidade entre regiões e........

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