No espaço-tempo em que vivemos, em plena era digital, os locais e os lugares diversificam-se e multiplicam-se. São os locais de residência (2ª e 3ª residências), os locais de trabalho (presencial, teletrabalho, espaços de coworking, tiers-lieux), os lugares de recreio, lazer e visitação, os locais de compras e consumo, os locais do espaço público, os locais para as práticas físicas e desportivas, os lugares de culto e peregrinação, os locais de manifestação artística e cultural, os lugares de realidade aumentada, virtual e imersiva, os lugares e as plataformas de ensino e formação, os locais de fuga, etc. Este enunciado significa que podemos viver em vários lugares e que esta topoligamia parece remeter-nos para uma antropologia da multilocalidade ou, se quisermos, para um espaço-rede de lugares, uns mais espaços de lugares fixos, outros mais espaço de lugares móveis ou fluxos.

De um ponto de vista mais analítico e funcional falta, ainda, um propósito e um sentido à tipologia dos lugares enunciados e à dialética dos espaços de lugares e fluxos, ou seja, faltam as hiperligações entre os diversos lugares e um storytelling adequado à sua estratégia de desenvolvimento. E sabemos como esta estratégia é bem-vinda nas áreas de baixa densidade. Vejamos algumas condições básicas que precisam de ser preenchidas:

- Os instrumentos de ordenamento e gestão territorial são imprescindíveis e com o apoio dos sistemas de informação geográfica (SIG) podem facilitar a leitura dos valores e signos distintivos territoriais de todo o sistema-paisagem,

- A identificação dos valores naturais e culturais e a sua tradução sobre a forma de signos distintivos territoriais remete-nos para o pensamento complexo e uma nova antropologia dos espaços de lugares,

- Um primeiro esboço das hiperligações entre valores e signos distintivos, por um lado, e espaços-rede de lugares e de fluxos, por outro, abre-nos a porta para uma relação muito mais inovadora entre economia criativa e economia produtiva, em especial, no mapeamento e planeamento das fileiras e cadeias de valor dos territórios-rede,

- A smartificação do território, por via das plataformas digitais colaborativas, e o storytelling por via do marketing digital dos espaços-rede permitem-nos alargar o acesso às redes colaborativas que interligam comunidades online e comunidades offline e onde o acesso às artes digitais é uma enorme fonte de criatividade territorial,

- A multilocalidade e a multiterritorialidade, através da mudança de escala das operações, aumentam não apenas o stock de recursos e o leque de medidas de política à disposição dos territórios, como alarga o valor acrescentado das hiperligações entre economia criativa e economia do sistema produtivo local; as denominações de origem, indicações geográficas de proveniência, os sítios classificados, o património Unesco e outras certificações aumentam a distinção dos lugares.

Aqui chegados, já sabemos que as características dominantes do nosso tempo são a mobilidade acelerada, a virtualidade aumentada e a topoligamia crescente enquanto as comunidades online e suas plataformas são os novos lugares centrais da era digital. Neste contexto, o espírito dos lugares já não se obtém tanto da sua substância, mas mais da sua itinerância, ou seja, o indivíduo é constantemente convocado para participar em uma série de eventos realizados em não-lugares, em terceiros lugares e em híper-lugares. As festas, as feiras e os festivais não têm fronteiras ou limites, correm o mundo através das plataformas digitais, e a sua maior ou menor reputação faz com que aquilo que começou por ser um espaço de fluxos, pura visitação, se converta um dia, quem sabe, numa verdadeira peregrinação, no espírito e no génio do lugar.

Um fator de esperança que se assinala, é que, na dialética intensa entre espaço de lugares e espaço de fluxos, sempre em busca do nosso equilíbrio mental e da nossa melhor geografia sentimental, e por causa da melancolia vertical das grandes urbes metropolitanas, possamos descobrir, mais tarde ou mais cedo, a força dos laços fracos (Granovetter, 1973) por intermédio das nossas vivências e relações nas comunidades virtuais. E essa descoberta será, por vezes, uma verdadeira e gratificante revelação. O mesmo se diga das artes e da cultura e da criatividade que lhe está associada. Nesta sociedade vertiginosa emergem as artes de rua, as artes digitais, as artes da paisagem e as artes em geral, mas, também, uma nova relação cidade-campo, uma outra urbanidade e multilocalidade. A artes realimentam o espírito e moderam a velocidade dos fluxos, só precisamos de descobrir rapidamente a força dos laços fracos nas comunidades online e a partir deles, com a ajuda das artes e da cultura, reinventar os velhos lugares e as novas vivências do quotidiano, isto é, a nossa geografia sentimental da era digital.

QOSHE - Criatividade territorial, espaço-rede de lugares e multilocalidade - António Covas
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Criatividade territorial, espaço-rede de lugares e multilocalidade

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20.02.2024

No espaço-tempo em que vivemos, em plena era digital, os locais e os lugares diversificam-se e multiplicam-se. São os locais de residência (2ª e 3ª residências), os locais de trabalho (presencial, teletrabalho, espaços de coworking, tiers-lieux), os lugares de recreio, lazer e visitação, os locais de compras e consumo, os locais do espaço público, os locais para as práticas físicas e desportivas, os lugares de culto e peregrinação, os locais de manifestação artística e cultural, os lugares de realidade aumentada, virtual e imersiva, os lugares e as plataformas de ensino e formação, os locais de fuga, etc. Este enunciado significa que podemos viver em vários lugares e que esta topoligamia parece remeter-nos para uma antropologia da multilocalidade ou, se quisermos, para um espaço-rede de lugares, uns mais espaços de lugares fixos, outros mais espaço de lugares móveis ou fluxos.

De um ponto de vista mais analítico e funcional falta, ainda, um propósito e um sentido à tipologia dos lugares enunciados e à dialética dos espaços de lugares e fluxos, ou seja, faltam as hiperligações entre os diversos lugares e um storytelling adequado à sua estratégia de desenvolvimento. E sabemos como esta estratégia........

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