Cinquenta anos depois é uma clara evidência. O 25 de abril permitiu-nos aceder às Comunidades Europeias de então e a integração europeia permitiu-nos cumprir uma parte importante das promessas de abril. Mas o caminho faz-se caminhando e há promessas ainda por cumprir. Num país tão pequeno, tão bem servido de infraestruturas de transporte e meios de comunicação, é inaceitável que não tenha sabido aproveitar os recursos vindos de Bruxelas para desenvolver por igual todas as parcelas do seu território. Cinquenta anos depois do 25 de abril o país ainda tem praticamente 2/3 dos seus municípios classificados como áreas de baixa densidade. Há, claramente, um país em baixa, uma sociedade em declínio demográfico e uma economia dual que se despovoa e desertifica cada vez mais. Não há nenhuma fatalidade ou determinismo com os territórios de baixa densidade, o que há é uma história política e social inscrita nos territórios, isto é, uma série de opções políticas e económicas feitas em certos períodos da nossa vida coletiva que conduziram à situação desigual e assimétrica que hoje conhecemos. Poderia ter havido outras opções, outra história, e teríamos seguramente outro território. O território que temos é, portanto, uma construção política e social, resultado da nossa incompetência coletiva, não uma fatalidade do destino ou da natureza.

Se quisermos perceber o que se passou, uma parte importante é explicada pela forma como tirámos partido do próprio processo de integração europeia. Na verdade, em 35 anos de programação plurianual de fundos europeus (1989-2024) houve tempo suficiente para criar um sistema com várias zonas de conforto, alguns direitos adquiridos e uma inércia conveniente em matéria de gestão de expectativas. Digamos que se criou uma espécie de ritual que o país todo aguarda com muita expectativa de 7 em 7 anos, de tal modo que se pode falar de um sistema e de um conjunto de atores em pleno funcionamento ou. dito de forma mais simples, de uma burocracia e de uma atividade de lobbying em plena operação e com muitos adeptos.

Com efeito, é preciso não esquecer que vivemos num estado de estrutura unitária, com autonomia política local e autonomia regional nas ilhas. No plano da mesoeconomia regional, o sistema instituído, ao mesmo tempo demasiado centralista e localista, simula bastante e com frequência, senão vejamos:

- Numa estrutura de governo e administração unitária, como a nossa, o nível regional é mais um nível de compatibilização e coordenação;

- O sistema de administração desconcentrada funciona no modo vertical e hierárquico, de cima para baixo;

- O sistema cria muitos simulacros de participação para poder funcionar e criar habituação e acomodação;

- O sistema funciona numa lógica utilitarista declarada, de saldo de fluxos e taxas de execução, tendo em vista obter a melhor execução e máxima entrada de fundos europeus;

- O sistema não tem multiescalaridade e governação multiníveis suficientes devido à baixa autonomia dos níveis intermédios de administração;

- O sistema padece de um excesso de institucionalização, ora centralista ora localista, e com baixa participação dos agentes da chamada sociedade civil;

- O sistema produz muita retórica sobre inovação, mas os territórios de geometria fixa são mais conservadores do que os territórios mais jovens de geometria variável;

- O sistema não leva em boa conta a produção de capital social, ignorando com ligeireza que os valores da inovação social e da sociedade colaborativa são valores portadores de futuro através das redes respetivas.

Dito isto, que já não é pouco, importa, ainda, acrescentar uma certa inibição e timidez da economia criativa no que diz respeito à formação de uma inteligência coletiva territorial operacionalmente adaptada aos tempos atuais caracterizados pelo impacto das grandes transições – climática, energética, ecológica, digital, migratória, demográfica, laboral, geopolítica, cultural - e seus efeitos assimétricos sobre as comunidades e os territórios. Está em causa, em primeira instância, a missão e o papel das instituições de ensino superior e do universo associativo empresarial correspondente que ainda não convergiram o suficiente para criar uma dinâmica própria nas áreas de baixa densidade.

Aliás, e a propósito desta associação e convergência de interesses de base territorial, importa sublinhar o seguinte:

- A associação e a convergência de interesses determinam os limites de uma área de intervenção, o stock de recursos disponíveis e a escala das operações a desenvolver;

- A associação e a convergência de interesses determinam a diversidade dos atores e das suas expectativas, logo, o alcance e a previsão dos eventuais conflitos de interesses;

- As parcerias são imprescindíveis, mas o investimento em capital social não se confunde com simples arranjos de conveniência; além disso, a qualidade das equipas técnicas depende da variedade dos atores, sem esquecer que só há competência se houver permanência;

- A associação e a convergência de interesses, recorde-se, libertam sempre recursos ociosos que se convertem muitas vezes em anti recursos e contra recursos, logo, é necessária uma gestão e mediação muito prudentes;

- O processo cognitivo das associações e parcerias é muito frágil e o paradoxo da vizinhança existe mesmo; os vizinhos cooperam pouco e mal, logo são necessárias uma gestão inteligente e criativa e uma liderança esclarecida sobre o processo e o procedimento colaborativos;

- A governação multiníveis – europeia, internacional, transfronteiriça, nacional, regional, sub-regional e local – é muito exigente e corre o risco de ser muito justificativa, isto é, servir de pretexto e justificação para pôr a inércia do sistema a funcionar e a dominar.

Em terceiro e último lugar, é fundamental saber acrescentar valor à programação regional e distinguir muito bem os três momentos dessa programação, a saber, a polity (as escolhas políticas), a policy (as políticas públicas) e a politics (os comportamentos políticos). Nesta linha de argumentação, sabemos bem que o modo de olhar para um problema é uma parte importante do problema, pois a perspetiva usada pelo observador pode acrescentar mais problema ao problema já existente ou então trazer maior diversidade de soluções e alargar o campo de possibilidades. Há, portanto, diversos postos ou perspetivas de observação que fazem variar a natureza sociopolítica e socioeconómica da realidade observada e, por essa via, a natureza e o alcance da inteligência coletiva territorial.

Assim, podemos adotar várias perspetivas de olhar para um problema, procurando, sempre, a sua adequada e justa complementaridade, por exemplo: uma perspetiva meramente administrativa e conjuntural de dispêndio de recursos públicos disponíveis, usando, para o efeito, o capital de queixa acumulado, uma perspetiva mais terapêutica e cognitiva do problema, uma perspetiva minimalista de simples animação territorial e mitigação de danos, enfim, uma perspetiva mais ambiciosa na área, por exemplo, da economia digital e da economia criativa.

É certo, com a globalização e a integração europeia a dinâmica territorial e regional tornou-se mais acelerada, mais competitiva e mais excludente. Sabemos que não há regiões eternamente competitivas e regiões eternamente dependentes. Sabemos que a integração europeia alterou substancialmente a estrutura de custos e benefícios dos territórios, a saber, os custos e benefícios de contexto e formalidade, concorrência e regulação, impacto e sustentabilidade, cobertura de risco e custos de oportunidade. Esta nova estrutura de custos e benefícios deslocou o ponto de equilíbrio entre competitividade, cooperação e coesão, ou seja, tornou muito mais seletiva e discriminatória quer a política de concorrência (e as ajudas de estado), quer a política de coesão (e os seus apoios ao investimento e regiões menos desenvolvidas).

Em síntese, temos em 2024 uma concorrência acrescida no âmbito do mercado interno, uma condicionalidade macroeconómica mais exigente, uma estrutura de custos que altera substancialmente o retorno e a rentabilidade de muitos investimentos e no horizonte de 2030 uma política europeia de coesão pós-2027 que será dirigida preferencialmente à Outra Europa, à Europa do pós-guerra e dos futuros alargamentos.

Nota final

É bom não esquecer que, num espaço integrado como o europeu, a gestão das restrições e condicionalidades muda substancialmente a natureza da administração, isto é, são os programas que reinventam ciclicamente os territórios, de cima para baixo, e não os territórios que formatam os programas e as medidas, de baixo para cima. Esta pré-existência amolece e acomoda a relação entre o ator e o sistema e permite que os caçadores furtivos tenham algum sucesso. Por isso, não queria terminar sem fazer a pergunta decisiva: vamos comemorar condignamente os cinquenta anos do 25 de abril de 1974 e celebrar em 2024 a grande transformação em curso da sociedade portuguesa que iremos consolidar até ao final da década, ou vamos consumir melancolicamente a terceira década do século XXI com taxas de crescimento médio medíocres abaixo de 1% e semelhantes àquelas que tivemos nas primeiras duas décadas deste século? O futuro exige-nos esse esclarecimento.

QOSHE - O 25 de Abril e a integração europeia - António Covas
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O 25 de Abril e a integração europeia

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27.04.2024

Cinquenta anos depois é uma clara evidência. O 25 de abril permitiu-nos aceder às Comunidades Europeias de então e a integração europeia permitiu-nos cumprir uma parte importante das promessas de abril. Mas o caminho faz-se caminhando e há promessas ainda por cumprir. Num país tão pequeno, tão bem servido de infraestruturas de transporte e meios de comunicação, é inaceitável que não tenha sabido aproveitar os recursos vindos de Bruxelas para desenvolver por igual todas as parcelas do seu território. Cinquenta anos depois do 25 de abril o país ainda tem praticamente 2/3 dos seus municípios classificados como áreas de baixa densidade. Há, claramente, um país em baixa, uma sociedade em declínio demográfico e uma economia dual que se despovoa e desertifica cada vez mais. Não há nenhuma fatalidade ou determinismo com os territórios de baixa densidade, o que há é uma história política e social inscrita nos territórios, isto é, uma série de opções políticas e económicas feitas em certos períodos da nossa vida coletiva que conduziram à situação desigual e assimétrica que hoje conhecemos. Poderia ter havido outras opções, outra história, e teríamos seguramente outro território. O território que temos é, portanto, uma construção política e social, resultado da nossa incompetência coletiva, não uma fatalidade do destino ou da natureza.

Se quisermos perceber o que se passou, uma parte importante é explicada pela forma como tirámos partido do próprio processo de integração europeia. Na verdade, em 35 anos de programação plurianual de fundos europeus (1989-2024) houve tempo suficiente para criar um sistema com várias zonas de conforto, alguns direitos adquiridos e uma inércia conveniente em matéria de gestão de expectativas. Digamos que se criou uma espécie de ritual que o país todo aguarda com muita expectativa de 7 em 7 anos, de tal modo que se pode falar de um sistema e de um conjunto de atores em pleno funcionamento ou. dito de forma mais simples, de uma burocracia e de uma atividade de lobbying em plena operação e com muitos adeptos.

Com efeito, é preciso não esquecer que vivemos num estado de estrutura unitária, com autonomia política local e autonomia regional nas ilhas. No plano da mesoeconomia regional, o sistema instituído, ao mesmo tempo demasiado centralista e localista, simula bastante e com........

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