O jantar de hoje é a única refeição do ano em que em vez de se desejar bom apetite, deseja-se feliz Natal. E à hora que o leitor está a ler isto, é possível que se lembre que lhe falta alguma coisa para a ceia e esteja agora a pingar as folhas do jornal, ou o ecrã do telemóvel, com lágrimas de revolta por imaginar que vai ter de se meter agora no olho do furação e lutar para ficar com o último peru com grande probabilidade de sair com um olho negro e de mãos a abanar.

Ao preço a que está o bacalhau há mesmo quem o tenha deixado de considerar fiel amigo porque é daqueles amigos que vêm lá de fora e que envolve cada vez mais demasiado esforço para que apareça num jantar. Às vezes contentamo-nos com o primo dele, aquele que até tem a alcunha que se dá nas aldeias àqueles primos meio tolos, o paloco. Polvo, quem come? Quem for astuto para meter logo o garfo na travessa assim que chega a mesa, não é? É que, uma pessoa põe um polvo de 4 quilos na panela e quando sai parece uma camisola de lã a sair de um programa de lavagem a 60 . O preço está pela hora da morte e não dá para a cova de um dente. Metam uns tentáculos valentes de pota que, depois de se mandarem abaixo umas quantas garrafas de vinho, ninguém dá pela diferença e, se por acaso der, ainda se passa a noite a fazer trocadilhos giros com “pota” e troca-se o habitual teatrinho de Natal por um espetáculo de revista no meio da sala. E, com o preço a que está o azeite, este ano eu não rego prato nenhum. No máximo, pulverizo. Digo-vos assim, a crise está tão grave que, se logo à noite alguém puser um pratinho de azeitonas na mesa, é pegar naquilo, meter entre as mãos e apertar com muita força. Batatas e cenoura? Check. Ah, e trouxeram as couves? Muito bem. E compraram a contar com aquele sobrinho mimado que não come mesmo nada que seja verde? Espero que sim. Para se dar aquele número habitual que começa com uma birra do Pedrinho e acaba num “Ok. Vou fazer-lhe um bife” e sem nervos, que esses já nós os temos.

Mas, atenção, o mais importante é aproveitarem o tempo em família. Especialmente esta consoada, porque pode muito bem ser a que passamos todos juntos. As eleições estão aí e as sondagens revelam que as famílias estão mais divididas que nunca. Uma pessoa aguentava um familiar do Chega, agora 17% dos parentes? Por isso, aproveitem para se despedir daquele primo que subscreveu o canal de YouTube do Tiago Paiva. Deem um abraço ao tio que acha que brinco na orelha é à maricas e deem um beijo àquela tia sexagenária que fica com o joelho a doer tal é a humidade que lhe causa o André Ventura. Presenteiem o namorado da vossa irmã que acha que os imigrantes deviam voltar para as suas terras desde que antes lhe tragam um McMenu pela Uber Eats. Depois do dia 10 de março, os natais não vão ser os mesmos.

Resta-me desejar um feliz Natal a todos e em especial a quem passou a noite a trabalhar para que este jornal saísse no dia em que o vamos engordurar com dedadas de peru no forno. E ainda mais especial a quem vai estar hoje, na noite da consoada, a escolher fotografias de primeira página, a imprimir páginas com anúncios de empresas que compram ouro e a escrever sobre interessantíssimos recordes que, nesta altura do ano, Portugal costuma bater como a maior filhó de abóbora do Mundo ou o maior bolo-rei feito só com sobras de todos os bolos-reis porque ninguém gosta do raio do bolo-rei.

P.S.: O trenó do Pai Natal, este ano, parece um navio cargueiro só de caixinhas de lojas de eletrodomésticos. Sim. Aquele embrulho debaixo da árvore, com o teu nome escrito, tem 99,8% de probabilidade de ser uma Airfryer.

QOSHE - Navidades, navidades, só no Continente - Cátia Domingues
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Navidades, navidades, só no Continente

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24.12.2023

O jantar de hoje é a única refeição do ano em que em vez de se desejar bom apetite, deseja-se feliz Natal. E à hora que o leitor está a ler isto, é possível que se lembre que lhe falta alguma coisa para a ceia e esteja agora a pingar as folhas do jornal, ou o ecrã do telemóvel, com lágrimas de revolta por imaginar que vai ter de se meter agora no olho do furação e lutar para ficar com o último peru com grande probabilidade de sair com um olho negro e de mãos a abanar.

Ao preço a que está o bacalhau há mesmo quem o tenha deixado de considerar fiel amigo porque é daqueles amigos que vêm lá de fora e que envolve cada vez mais demasiado esforço para que apareça num jantar. Às vezes contentamo-nos com o primo dele, aquele que até tem a alcunha que se dá nas aldeias àqueles primos meio tolos, o paloco. Polvo, quem come? Quem for astuto para meter logo o garfo na travessa assim que chega a........

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