Eu não votei AD e tenho de admitir que estive muito mal. Estive mal porque nas últimas eleições não apostei num Governo que mal entrou em funções e o país já está radicalmente melhor. É que só um país sem problemas de maior é que pode estar uma semana inteira dedicado ao tema de um logótipo.

A palavra de campanha da coligação foi “mudança” e já cumpriu. Porque não disse do quê. As pessoas é que acharam que tinha que ver com coisas como saúde ou educação. Problema delas. Mas lá está, como estamos em Portugal, não se pode fazer uma coisa, que caem logo em cima de um gajo. Vieram logo os críticos com “ai, isso não interessa à vida dos portugueses”. Não? Eu estava desde o final de setembro em sobressalto sempre que abria o site do Ministério dos Assuntos Parlamentares e levava com aquele logótipo nas fuças. Pois é. Ainda estou aqui com a bochecha toda assada com aquelas chapadas de inovação. E, na verdade, isto pode parecer uma coisa sem importância mas, possivelmente, é isto que vai safar a estabilidade governativa, na medida em que foi uma forma subtil de conquistarem o Chega, que andou muito ralado com este assunto. Sugiro até que, para estreitar ainda mais os laços, o Conselho de Ministros, além de reverter a questão do logótipo, torne obrigatório que o Executivo use roupa interior com a bandeira nacional, como o grande nacionalista André Ventura diz que faz. Se é uma estratégia eficaz para o próximo escrutínio público não sei, mas para escrotinho é de certeza.

Mas não deixa de ser espantoso perceber o que mexe mesmo com as pessoas, hoje em dia: assuntos irrelevantes que servem para nos dividir. E este é um tema perfeito porque como é que se está a discutir desta maneira, quando nem sequer há um consenso sobre como é que diz a palavra? Depois, toda a gente tem algo a opinar sobre o logótipo e eu, como alguém com uma carreira em comunicação, fico pessoalmente ofendida por ver qualquer um a comentar sem qualificações. Andei eu a queimar pestanas com o Keller e o Kotler e a carregar o Publicitor na mochila de um lado para o outro, para vir um badameco qualquer opinar sobre branding e manuais de normas. Cada macaco no seu galho. Não me veem a ir à SIC Notícias sentada ao lado do Nuno Rogeiro e do José Milhazes a comentar geopolítica do ponto de vista de uma pessoa que, na faculdade, teve a segunda melhor nota da turma em Photoshop.

Isto pode parecer absurdo, mas se vocês alinharam a semana toda nesta conversa, vou ter de dizer: não é sobre mudar a bandeira nacional. É um logótipo. “É muito grave! Isto põe em causa a nossa identidade!”. Pois, é capaz. Verde de um lado, vermelho do outro e uma bola amarela ao meio. O que será? Que país será este, meu Deus? Mas, portanto, foi feito um rebranding e até se criou um tipo de letra oficial para acompanhar o logótipo. Ou seja, o que, em comunicação, chamamos, exactamente, identidade. E o resultado foi uma simplificação que serviu inclusivamente para que a nova imagem não desvirtuasse os elementos graficamente mais complexos da bandeira original. Além disso, foi criado a pensar na resolução dos ecrãs e para ser usado apenas em escala impressa que, graças a um sistema mais simples de cores, poupa nos recursos (e pode parecer pouco, mas vocês sabem o que Portugal adora papelada). E vai daí, o Governo de Portugal reuniu-se pela primeira vez e considerou inevitável investir tempo para reverter isto. Só tenho pena que não tenha decidido criar também um grupo de trabalho e até uma comissão independente para decidir mesmo bem. É que, pelos vistos, isto é um assunto tão inquietante, que suspeito que, em 1996, quando o Canal 1 mudou para RTP 1, os novos membros do Executivo tenham ficado de cama. Recuperou-se a esfera armilar, o escudo, as quinas e os castelos. “Chupem. As nossas comunicações não vão com esse bonequinho no final do email. ah-ah!”.

Nisto, porque já não estava a ser ridículo o suficiente, foi criada uma petição para travar Montenegro e repor o logótipo anterior, que já conta com quase 4000 subscritores, e o designer a quem foi encomendado este projeto está, alegadamente, a receber ameaças de morte. A prova de que Portugal é um país ainda muito infantil é o tempo que passa a discutir bonecada.

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07.04.2024

Eu não votei AD e tenho de admitir que estive muito mal. Estive mal porque nas últimas eleições não apostei num Governo que mal entrou em funções e o país já está radicalmente melhor. É que só um país sem problemas de maior é que pode estar uma semana inteira dedicado ao tema de um logótipo.

A palavra de campanha da coligação foi “mudança” e já cumpriu. Porque não disse do quê. As pessoas é que acharam que tinha que ver com coisas como saúde ou educação. Problema delas. Mas lá está, como estamos em Portugal, não se pode fazer uma coisa, que caem logo em cima de um gajo. Vieram logo os críticos com “ai, isso não interessa à vida dos portugueses”. Não? Eu estava desde o final de setembro em sobressalto sempre que abria o site do Ministério dos Assuntos Parlamentares e levava com aquele logótipo nas fuças. Pois é. Ainda estou aqui com a bochecha toda assada com aquelas chapadas de inovação. E, na verdade, isto pode parecer uma coisa sem importância mas, possivelmente, é isto que vai safar a estabilidade governativa, na medida........

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