“Frankenstein” é de 1818 e foi escrito por uma mulher - Mary Shelley, filha de uma eminente escritora e intelectual feminista - Mary Wollstonecraft e do filósofo William Godwin. Ora, Godwin é precisamente o nome do cientista louco, criador de Bella Dexter, no filme “Pobres criaturas” - uma espécie de Frankenstein feminista, agora nos cinemas e indicado ao Oscar de melhor filme.

A película de Yorgos Lanthimus é baseada num livro de Alasdair Grey, mas tem a virtude de centrar a narrativa na vivência da protagonista, dando primazia à sua visão das coisas e ao seu mundo interior. Uma história angustiante e perversa, que consegue criar uma heroína feminista, estranhamente livre, bem resolvida e serena, apesar de partir de uma situação de clausura asfixiante.

A história começa em casa de “God”, que tem a irónica alcunha de “Deus” por ser o criador e figura paterna da personagem representada por Emma Stone. O cientista cumpre a experiência de ressuscitar uma mulher que se havia suicidado grávida, implantando o cérebro do bebé no lugar do seu. Sendo a partir da experiência desta mulher adulta que vive tudo pela primeira vez, como as crianças, que se cria o pretexto para pensarmos na possibilidade da existência feminina sem o condicionamento cultural que nos tolhe a liberdade de dizer, fazer, amar, dançar e recusar sem pudor, afirmativa e despreocupadamente.

Bella vê o Mundo com o fascínio da infância, com a excitação da estreia e da novidade, sem filtros morais além dos que vai construindo como seus, a partir da absorção do Mundo e mais tarde dos livros. Relaciona-se com os outros seguindo o seu instinto pueril, faz birra, cospe a comida, agride de repente, caminha desengonçadamente e dança como se ninguém estivesse a ver. Vê o Mundo ampliado, com cores vibrantes, sorri e chora desabridamente como se tivesse três ou quatro anos. Tal como se masturba, faz sexo, prostitui-se, discute filosofia, faz escolhas, dá opiniões e relaciona-se como uma mulher adulta, totalmente imune à influência da nossa cultura patriarcal. Sendo precisamente no confronto com toda a sua liberdade, que afloram as contradições e as tensões dos homens com que se relaciona, em mais um bom pretexto para pensarmos na forma como a ideia de posse, de propriedade e de exclusividade, mina as relações entre homens e mulheres e justifica tantas vezes a sua toxicidade e violência.

O filme é belíssimo, angustia e faz rir, inquieta e entretém, tem uma incrível direção de arte, figurinos impressionantes, bons atores, uma banda sonora irrepreensível (com fado da Carminho incluído) e tem uma atuação inesquecível de Emma Stone (que, despida de pudores como Bella Baxter, entregou tudo). Já passaram uns dias e o filme continua a acompanhar-me e, quando penso nele, recordo-me sempre da deixa em que a heroína descreve um passeio por uma Lisboa alucinógena (a que chega para fruir e libertar-se) como “uma boa mistura de açúcar e violência”, acrescentando que há que sorvê-lo como uma criança que descobre os pastéis de nata.

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“Pobres criaturas”

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06.02.2024

“Frankenstein” é de 1818 e foi escrito por uma mulher - Mary Shelley, filha de uma eminente escritora e intelectual feminista - Mary Wollstonecraft e do filósofo William Godwin. Ora, Godwin é precisamente o nome do cientista louco, criador de Bella Dexter, no filme “Pobres criaturas” - uma espécie de Frankenstein feminista, agora nos cinemas e indicado ao Oscar de melhor filme.

A película de Yorgos Lanthimus é baseada num livro de Alasdair Grey, mas tem a virtude de centrar a narrativa na vivência da protagonista, dando primazia à sua visão das coisas e ao seu mundo interior. Uma história angustiante e perversa, que consegue criar uma heroína feminista, estranhamente livre, bem resolvida e serena, apesar de partir de uma situação de clausura........

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