No ano em que cumprimos cinco décadas de Abril, votar, mais do que um direito, é uma obrigação. E se antes já o sentia, sobretudo enquanto mulher, na atual conjuntura a abstenção parece-me inconcebível. Como é que em sã consciência, histórica, política e social, poderia desperdiçar um direito que tantas vidas custou a conquistar? Quantas pessoas dedicaram a sua existência, com grande prejuízo pessoal e familiar, às vezes até com experiências de exílio, clandestinidade, tortura e prisão, para que hoje, 50 anos depois, haja quem se dê ao luxo de preferir ir à bola ou ao shopping? Como é que há quem dê por garantido um direito que até há uma mão cheia de décadas não era consagrado a todas as mulheres? Como é que é possível, nem que seja por essa dívida histórica, não comparecer?

Acresce ainda que nos idos de vinte e quatro voltámos a ter guerra na Europa, voltámos a assistir ao genocídio de um povo (agora na Palestina), voltámos a ter a extrema-direita em crescimento, voltámos a ver questionados direitos que já dávamos como garantidos (como o do aborto) e, degrau a degrau, vemos normalizados discursos e posicionamentos que há bem pouco tempo nos pareceriam totalmente anacrónicos. Assim, nunca como antes tive tanta certeza de que o compromisso com a democracia exige uma consumação e se, enquanto povo, já somos tão pouco participativos em associações de moradores, sindicatos, movimentos sociais e partidos, e mesmo em manifestações e outros atos públicos de reivindicação e demonstração de descontentamento, o mínimo é ir votar de quatro em quatro anos (mesmo que agora seja mais de dois em dois).

Votemos, nem que seja no menos mau, se não encontramos quem nos encha as medidas todas, mas votemos. Votemos em consciência, mas sobretudo em solidariedade, ou seja, não apenas para defender os nossos próprios interesses, mas pensando nos mais desprotegidos (muitos dos quais não têm direito ao voto). Votemos pelas crianças, cuja pobreza vem em primeira instância da pobreza das mulheres, cuja vida depende das urgências obstétricas, de cuidados de saúde maternoinfantis de qualidade e para todas, de licenças de parentalidade maiores, com mais apoio, com emprego assegurado no fim (e não com os habituais despedimentos por gravidez), e cujo futuro depende da qualidade da escola pública e das suas cantinas.

Votemos pelos imigrantes que (não podendo votar) são as pessoas socialmente mais vulneráveis, a viver na rua, vítimas de violência (de máfias e da polícia), totalmente excluídas da assistência do Estado, à mercê da exploração e do trabalho escravo, mesmo sustentando a nossa Segurança Social e garantindo que haja construção civil, agricultura, restauração, serviços de limpeza, entre outros pilares da nossa economia. Votemos pelos velhos e acamados, que vivem com frio, em casas precárias, com pensões curtas que não pagam a farmácia, muitas vezes sozinhos e esquecidos pelo sistema.

Em março, votemos por Abril, para que continue a cumprir-se (para todos)!

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Em março por Abril

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05.03.2024

No ano em que cumprimos cinco décadas de Abril, votar, mais do que um direito, é uma obrigação. E se antes já o sentia, sobretudo enquanto mulher, na atual conjuntura a abstenção parece-me inconcebível. Como é que em sã consciência, histórica, política e social, poderia desperdiçar um direito que tantas vidas custou a conquistar? Quantas pessoas dedicaram a sua existência, com grande prejuízo pessoal e familiar, às vezes até com experiências de exílio, clandestinidade, tortura e prisão, para que hoje, 50 anos depois, haja quem se dê ao luxo de preferir ir à bola ou ao shopping? Como é que há quem dê por garantido um direito que até há uma mão cheia de décadas não era consagrado a todas as mulheres? Como é que é possível, nem que........

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