O Algarve está sem água. Toda a gente sabia que isso era inevitável. Fala-se de limitação de consumo, pede-se mão pesada no racionamento, o setor clama para que se priorize a agricultura e suas necessidades de regadio, mas pouco ou nada se fala sobre a reorganização profunda que é preciso fazer para que a região se adapte a uma seca que tem muito mais de endémica do que de circunstancial. Abundam campos de golfe regados com água potável, cresce a cultura dos abacateiros (que consomem quatro ou cinco vezes mais água do que as culturas típicas da região, como as laranjeiras ou amendoeiras), ninguém parece conseguir parar o desperdício e os aldeamentos de luxo atingem (com suas piscinas e jardins faustosos) os maiores consumos nacionais. Teme-se o pior para o verão, mas com o extremar das alterações climáticas, o longo verão da desertificação parece muito provável.

O Algarve e a inércia em tomar medidas preventivas corajosas, que sejam de facto efetivas, serve de exemplo do que se passa a nível global. Estamos a ver a profecia a realizar-se, mas não conseguimos aplicar estratégias de adaptação e prevenção à altura das necessidades, por não querermos sair do comodismo vigente e da lógica do lucro acima de tudo (inclusive da vida humana). Não temos coragem de regular o negócio de quem faz negócio contra a nossa sobrevivência coletiva, não temos coragem de limitar a pegada ecológica dos muito ricos que, com seus jatos privados, campos de golfe nas dunas, piscinas no deserto e consumo desenfreado, abusam dos recursos naturais que são de todos nos seus paraísos privados, e (mais triste ainda) não temos coragem para pensar noutras formas de organização económica, social, urbanística e agrícola.

Venderam-nos o fim da história e a ideia de prosperidade crescente, mas chegados aqui, perante o fracasso do modelo económico (que de crise em crise se desmente) e até da civilização (porque nenhuma civilização prospera sendo suicida), não conseguimos sequer vislumbrar outras possibilidades, não somos capazes de imaginar novas utopias. E quando algum adolescente, engajado e comprometido com a vida vem dizer (ou gritar) que temos de pensar em alternativas, há muito quem faça um esgar sobranceiro, perguntando arrogantemente se querem de volta a União Soviética, ou viver em Cuba. Como se estes jovens estivessem saudosos das utopias foscas do passado... Como se o capitalismo também não tivesse falhado... Basta voltar a Cuba e perguntar se o Haiti ou a República Dominicana estão muito melhor...

Não é do passado que precisamos. O passado foi o que nos trouxe à seca, aos incêndios, ao deserto e à escassez. Os putos querem falar do futuro. Querem inventar novas utopias. Mas a resistência da velha ordem, a TINA dos “adultos da sala”, a sobranceria geracional dos que sabem sempre mais, não permite sequer que a conversa comece, quanto mais o projeto, a estratégia, a mudança. Triste é o povo que não consegue imaginar o futuro. Nós somos esse povo.

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O futuro

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30.01.2024

O Algarve está sem água. Toda a gente sabia que isso era inevitável. Fala-se de limitação de consumo, pede-se mão pesada no racionamento, o setor clama para que se priorize a agricultura e suas necessidades de regadio, mas pouco ou nada se fala sobre a reorganização profunda que é preciso fazer para que a região se adapte a uma seca que tem muito mais de endémica do que de circunstancial. Abundam campos de golfe regados com água potável, cresce a cultura dos abacateiros (que consomem quatro ou cinco vezes mais água do que as culturas típicas da região, como as laranjeiras ou amendoeiras), ninguém parece conseguir parar o desperdício e os aldeamentos de luxo atingem (com suas piscinas e jardins faustosos) os maiores consumos nacionais.........

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